sábado, 31 de julho de 2010

A estória de Joãozinho e Pedrinho - ou sobre como as pessoas mudam e continuam as mesmas

Joãozinho e Pedrinho eram os melhores amigos que esse mundo já viu- faziam tudo juntos. Desde que, quando molequinhos, um grandalhão da rua ameaçou Pedrinho e Joãozinho correu para defendê-lo (e acabou levando uns safanões também, mas não por falta de coragem!), tornaram-se companheiros para brincadeiras, estudos, brigas e tristezas. E eles eram assim mesmo, Joãozinho era tão valente que chegava a ser bobo, porque era franzino e raramente ganhava uma briga. Já Pedrinho era um gordinho comilão, quietinho e caladinho, sem vocação para enfrentamentos. Joãozinho era preguiçoso, e só abria livros quando eles tinha quadrinhos, ou para não ficar de recuperação. Pedrinho era um dos geniozinhos da escola, e vivia falando sobre as estrelas, o sol e as galáxias distantes. Além da sua mãe, só Pedrinho conseguia fazer Joãozinho estudar alguma coisa – muito pouco, mas vá lá, já era alguma coisa, pro menino que só queria saber de jogar bola. Para os Pés de Pedrinho, todas as bolas eram quadradas – mas ele até topava ficar de goleiro para Joãozinho treinar seus chutes mirabolantes no quintal.

E eles cresceram assim, um quente e o outro frio, um seco e o outro molhado, um branco e o outro preto, mas duvidé-ó-dó que você achasse alguém que não dissesse que eles eram os melhores amigos desse mundo.

Tique-taque. E eles cresceram um pouco mais: a mãe de Pedrinho o levou para o médico e ele perdeu alguns quilos, apesar de ter continuado baixinho. Aos 18 anos, era o menino mais esperto quanto um rapazote de 18 anos pode ser, e entrou pra faculdade de medicina. Orgulho da mãe e do pai e, por que não?, orgulho de João. Sim, porque não fazia mais sentido chamar o garoto mais alto e forte do bairro de Joãozinho. Tique-taque. O garoto magrelinho esticou para cima e não demorou a entrar na academia, para esticar para os lados também. Nunca mais perdeu uma briga e foi o primeiro a arranjar uma namorada, depois outra, depois outra, depois duas ao mesmo tempo. Tique-taque. João decidiu não fazer faculdade – ia ajudar o pai com os negócios.

Tique-taque. Pedrinho sempre passava as tardes estudando e as noites no curso de Francês. Tique-taque. João trabalhava com o pai todas as tardes para aprender a tocar os negócios e a noite ia malhar, jogar uma pelada, namorar ou sair. Chamou Pedrinho várias vezes, mas o gordinho não achava lugar no meio dos novos amigos de João – eles conversavam sobre garotas que ele nunca tinha visto, músicas que ele nunca tinha escutado e times a que ele nunca tinha assistido jogar. Tique-taque. Já João não achava lugar, do mesmo modo, no novo grupo de Pedro – agora médico residente, um quase doutor – que viviam compartilhando anedotas sobre os casos mais bizarros do último plantão. Tique-taque. João trocou de carro enquanto Pedro juntava dinheiro para o seu primeiro Tique-taque. Um ano sem se ver. Tique-taque. Doutor Pedro comprou um apartamento pequeno para solteiros e comprou um cachorrinho cujo nome era Sabin. Tique-taque. Sabin cresceu e seu João nunca chegou a vê-lo, agora que estava amarrado, muito bem casado, com uma mulher grávida do seu primeiro filho. Tique-taque. Quando o filho de Seu João nasceu, Doutor Pedro estava de plantão no hospital e passou rapidamente pelo quarto para cumprimentar o velho amigo. Tique-taque. Seu João estranhou os muitos quilos a menos de Doutor Pedro, e o cabelo precocemente calvo. Tique-taque. Doutor Pedro estranhou a barba espessa de Seu João e notou que ele não devia estar com tempo para malhar há um longo período. Tique-taque. A esposa de Seu João conheceu, enfim, o famoso Pedrinho, de que a Sogra tanto falava. Tique-taque. Doutor Pedro comentou que estava partindo para a França. Tique-taque. 'Por quê?', perguntou Seu João. Tique-taque. Doutor Pedro iria fazer mestrado na França. Tique-taque. ‘Parabéns, Pedrinho’, Joãozinho abraçou. Tique-taque. E ele foi, o outro ficou. Tique-taque, Tique-taque, Tique-taque, Tique-taque. Os dois melhores amigos desse mundo, Seu João e Doutor Pedro.



A vida, fatalmente, vai dar suas reviravoltas – uns pra lá, uns pra cá, uns juntos, uns separados, uns feios, uns bonitos, uns felizes, uns tristes. A grande sacada é saber o quanto disso é realmente mudança, e o quanto é algo latente, intrínseco, inerente, intrincado, algo antigo que está aqui desde sempre, mas não entendíamos suas repercussões até vê-las dançando nas nossas caras.

Não que as pessoas não mudem: ao contrário, queridos leitores, elas mudam o tempo inteiro. Mas, às vezes, não é inteligente culpar o tempo e as circunstâncias – porque simplesmente não é culpa deles. A vida é algo que acontece.
Então, meu amigo, é assim mesmo, acontece.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Ode à Inutilidade?


Antes de ontem eu dormi 4 horas. Ontem dormi umas 3 e pouca. Hoje perdi a hora de manhã e cheguei na faculdade loucamente atrasada.

Um dia eu me peguei pensando que dormir era uma baita perda de tempo. Afinal, eu perco um tempo enorme dormindo todas as noites quando faço questão de preencher as demais horas do meu dia com um trilhão de coisas chamadas “úteis”. E eu definitivamente não estou reclamando: eu sou o tipo de pessoa que odeia ficar sem fazer nada.

Mas de uma coisa eu nunca posso esquecer: p*ta que pariu, eu adoro dormir. Ai que saudade que eu tenho, da aurora da minha vida, da minha escola querida, que me deixava dormir até mais tarde nos finais de semana... Meu recorde foram dezesseis horas e meia de sono contínuo – e aí, supera essa?

Dormir pra mim é, de longe, uma das melhores coisas da vida. E se eu pensei que dormir era uma perda de tempo, quando é obviamente algo delicioso, foi porque eu de novo, como muita gente, esqueci que a vida é bem mais legal quando a gente enche de coisas “inúteis” também. Esse é um dos meus maiores defeitos.

Nada é tão deliciosamente inútil como cantar alto Baby de Justin Bieber pelo quarto, mesmo que isso seja um pouco constrangedor; pintar as unhas de uma cor nova e berrante a cada semana, assistir a Friends todo dia mesmo você já conhecendo a história; rir do Chandler pela trigésima vez na mesmíssima semana; ver um jogo de basquete ao lado do seu namorado quando você obviamente não entende nada de nada além de “a bola tem que entrar dentro da cesta”; assistir ao jogo da Argentina só pra ver Messi balançando seus cabelos de um lado para o outro; assistir ao jogo da Inglaterra e Estados Unidos por “puuuuro interesse científico”; encontrar uma pessoa querida quando você tem prova no dia seguinte e está “apertadíssima”; tirar cravos dos outros porque INEXPLICAVELMENTE você acha isso divertido; escolher um presente para você mesmo quando você não vai comprar; assistir filme sobre Dragões por um real no meio da semana; DORMIR e tantas outras coisas mais.

Por isso, eu proponho uma devoção às coisas inúteis! A proporção que você vai por entre as coisas úteis e as inúteis na sua vida já é atribuição da autonomia da vontade, mas é sempre bom lembrar que nem tudo na vida é uma declaração de inconstitucionalidade por omissão baseada numa contingente colisão de princípios, que ocorreu em virtude do descompasso entre o horizonte de expectativas e o espaço de experiência. Saca?

Para encerrar, recomendo que ouçam Eletric Twist, da banda A Fine Frenzy (http://www.youtube.com/watch?v=mIpjiYmjXh4). Só porque o ritmo é super gostoso, mesmo que eu não entenda muito o que ela está querendo dizer.
Afinal, nem tudo na vida tem que ser assim tããããããão raciocinado.

Obs.: Homenageados à parte. ;D

domingo, 4 de abril de 2010

Saindo da Rotina

A vida vai, vem, dá meia volta e rodopia. Life’s a bitch, faz o que quer na hora que bem entende e o nosso controle sobre ela é bem menor do que gostaríamos que fosse. Por isso mesmo eu me sinto insegura de escrever sobre minha vida pessoal publicamente. Ninguém sabe do futuro, então eu me abraço à auto-proteção de guardar meus sentimentos para mim mesma.

Se bem que quando a gente escreve – e eu disse isso em uma das últimas postagens – a gente sempre deixa um pouco da nossa vida ali, como uma marca d’água. Então, todos os meus textos têm, naturalmente, bastante de mim. Mas hoje eu vou fazer um pouco diferente. Um dia especial merece reverências especiais.

Nem todos sabem por que hoje é um dia especial, mas os que sabem vão entender a razão de hoje o texto ser assumidamente meu.

O fato é que nós estamos perdidamente sozinhos.

Nossa mente é um emaranhado complexo de pensamentos, sinapses, sentimentos, deduções, ou seja lá como você queira chamar. Como um universo aprisionado numa cabeça de alfinete. Deve ser uma loucura lá dentro, tanto é que quando escapa um pouquinho desse emaranhado, sem passar pelo filtro da nossa racionalização, percebemos a bagunça – nos sonhos, por exemplo.

Se você olha para uma equação matemática e acha difícil, é porque você nunca se deparou frente a frente com um sentimento. Na verdade, ninguém nunca se deparou, e esse é o grande problema. Pensar já é complicado, imagine só sentir. Imagine não, lembre-se, porque todo mundo invariavelmente já sentiu algo. Não sentir frio, ou calor, ou fome, mas se sentiu sozinho, incompreendido, amado, amante, com medo, inseguro, etc.

O grande problema é que nossa linguagem é deficiente. Se a boca humana já tem dificuldades para explicar uma pontada no estômago ou uma dor de cabeça, imagina só a bagunça que é falar de sentimentos.

Como explicar, então, algo abstrato como o amor, por exemplo?

Aí alguém diz: ah.... Amor é amor, bolas. É amar, dã.

De fato, ao longo de séculos e séculos inventamos palavras para expressar os sentimentos. É algo inevitável diante da necessidade social de comunicar-se. Mas toda e qualquer palavra nasce vazia, nós é que a preenchemos – uma hora com um significado, outra hora com outro, numa eterna dança. Por isso toda e qualquer palavra possui uma variabilidade semântica imensa.

Só que preencher o significado de uma palavra como ‘flor’, por exemplo, é significativamente mais simples do que preencher o significado da palavra amor. A ‘flor’ possui um referencial externo compartilhado. Pode até ser impossível descrevê-la por completo, mas, ao menos, é possível descrevê-la de forma relativamente satisfatória.

Como preencher, então, a palavra amor? Como saber se o amor que eu sinto é o mesmo amor que você sente, se eles estão irremediavelmente aprisionados em nossas mentes? O que eu chamo de amor, pode você chamar de obsessão? O que eu chamo de amor, pode você chamar de amizade? O que eu chamo de amor, pode você chamar de desejo, paixão?

Como comparar o meu amor com o seu, para que cheguemos a um denominador comum mastigado e pronto para preencher a palavrinha oca ‘amor’?

Não há como, queridos leitores. A linguagem é a ponte que se propõe a unir duas pessoas, só que essa ponte está quebrada. Criar ‘tipos ideais’, definições universais para palavras como amor, solidão, saudade, tristeza, carinho, compaixão, desejo, culpa é pura perda de tempo. Já é falha a linguagem quando lidamos com um referencial externo como ‘flor’, imagine como ela é capenga para falar de uma coisa que é minha e só minha, e ao mesmo tempo sua e só sua, e ao mesmo tempo dele e só dele, que é o amor.

Então somos caixas fechadas, bem embrulhadas, perambulando por aí. Por mais que uma caixa tente dar dicas do presente que guarda dentro de si – se chacoalhando para mostrar o som, se aproximando para mostrar o cheiro – a outra caixinha jamais saberá. E por mais que uma caixa conte para outra o que há dentro de si, com toda a sinceridade que cabe dentro do seu coraçãozinho de caixa, a outra jamais terá visto, tocado, sentido o presente em suas mãozinhas de caixa.

Por mais que você grite ‘eu me sinto sozinho’, ninguém além de você jamais terá experimentado a sua solidão. Por mais que você escreva uma carta chorosa e saudosa, o leitor jamais terá sentido sua saudade. Por mais que você sussurre no ouvido do outro ‘eu te amo’, apenas você vai ter sentido e conhecido aquele amor.

Estamos sozinhos porque somos mudos. Jamais veremos o presente guardado dentro do embrulho que é o outro. Tentamos nos aproximar, nos tocar, tentamos explicar, nós tentamos... Mas a ponte sempre esteve e sempre estará quebrada.

Provemos: tente explicar o conforto que é ouvir aquela voz daquela pessoa especial. O máximo que eu consigo é, com os olhos fechados e um sorriso bobo atravessado, dizer que é bom e enche meu peito com uma sensação gostosa de calor e segurança. Os olhos e o sorriso são meros sintomas e dizer que é bom, quente e seguro não define absolutamente nada. E você, caro leitor, conseguiu obter resultados melhores que os meus?

Tentemos novamente: explique a sensação daquele abraço carinhoso daquela pessoa especial. Bom, eu me sinto profundamente protegida, como se os problemas do mundo fizessem ‘puft’ e sumissem. Eu sinto um calor gostoso dentro de mim, misturado com a sensação de que eu sou verdadeiramente importante. Apesar de ‘aquele abraço’ ser muito, muito, muito bom, eu cai novamente em palavras vagas como calar gostoso e segurança. E, sejamos honestos, quem já experimentou um abraço verdadeiramente carinhoso sabe que ele vai inexplicavelmente mais além do que essas minhas palavras frias.

Mas, apesar de todas as pontes quebradas e perrengues, nós sentimos carinho, sentimos medo, sentimos compaixão, sentimos saudade, sentimos amor; apesar de todos os entraves, nós sentimos. E isso, pacientes leitores, na minha humilde opinião, é uma das coisas mais belas do mundo.

Encontrar os olhos de uma pessoa especial, bem fincados nos seus; abraçar apertado; beijar longamente; ganhar um cafuné carinhoso nos cabelos; sorrir juntinho, com os olhos bem grudados, como se as risadas compusessem uma melodia juntas; sentir o calor de uma mão amiga na sua; reconhecer o cheiro de alguém bem querido; se sentir importante por receber o carinho que se gosta, sem precisar pedir; reconhecer uma mão carinhosa em seu rosto, mesmo de olhos fechados; dizer ‘eu te amo’ e ouvir de volta –não há palavra nesse mundo que chegue perto de explicar o que acontece dentro da gente nesses momentos.

Mas mesmo assim esses momentos acontecem e ainda bem que eles acontecem, ou a vida seria muito sem graça.

Porque, por mais que estejamos invariavelmente sozinhos dentro de nossas caixas pensantes, não podemos parar de tentar nos aproximar. Como já disseram os grandes, ‘For well you know that it's a fool who plays it cool, by making his world a little colder’.

Se falar é difícil, o que nos resta é sentir. Às vezes, os momentos em que estamos mais próximos de alguém, são os sem palavras: seja num olhar, num abraço, num choro compartilhado, num beijo intenso, numa tarde lado a lado, num momento de paixão.

Mágicos são os momentos em que você, apesar de todas as pontes interditadas, se conecta com aquela pessoa especial – totalmente, completamente. É como voar, voar sobre o abismo e sua ponte quebrada e, por um instante, sentir o chão firme do outro lado sob seus pés.

Então, em nome do que é bom e gostoso nessa vida, vamos tentar juntar nossas caixinhas. Por mais que os presentes estejam escondidos, pelo menos estarão lado a lado, juntos.

Um conselho? Quanto mais juntinho, melhor. Quem vai ser o tolo de dizer que isso não é bom?

sábado, 13 de março de 2010

Platão, comédias românticas e a perfeição.

Em um lindo dia de sol na bela cidade de Atenas, às margens do mar mediterrâneo, um belo rapaz de ombros largos matutava sobre a perfeição. Pensou, pensou, pensou, buscando avidamente um exemplo tangível de esmero dos deuses, requinte dos tempos... Um exemplar de perfeição. Então, ele olhou à sua volta com atenção – A beleza do oceano tirava-lhe o fôlego! O brilho dançava gracioso no azul celeste, que de tão celeste esquecia-se do horizonte e se confundia com o céu. ‘Perfeito, perfeito!’, ele pensou.

No entanto, em seguida, pensou nos naufrágios e nas mortes prematuras causadas pela ressaca dos oceanos, e Platão não via nada de perfeito na morte.

Continuou sua busca pela beleza completa: a mulher mais bonita era casada ou arisca, não servia; o peixe mais fresco, muito caro; os homens mais sábios, muito arrogantes.

Platão então pensou: ora, não há nada de perfeição à minha volta! Ele era certamente um rapaz muitíssimo esperto, mas não é necessária muita esperteza para constatar isso. O que há de feio do mundo, mais do que o que há de belo, sempre salta aos nossos olhos.

‘Mas há perfeito em minha cabeça’, Platão pensou. ‘Na verdade, só há perfeição em minha cabeça’. E Platão concluiu, meus caros leitores, que sua cabeça continha resquícios do mundo verdadeiro, do mundo da perfeição, dum mundo das idéias, onde tudo era perfeito. Nossa realidade pobre e rota seria apenas um reflexo falho das idéias perfeitas de outro mundo que não esse.

Claro que isso tudo foi uma brincadeirinha. Não, eu não faço a mínima idéia de como Platão chegou a sua teoria do ‘mundo das idéias’. Mas eu sei bem que, séculos e séculos depois, a perfeição continua ludibriando os nossos olhos.

A perfeição já foi ambicionada por tantos homens: renascentistas ou iluministas, doidos ou sãos, bonitos ou feios, sempre há alguém suspirando em busca do perfeito. Até nossa literatura de quando em quando buscam a perfeição: arte pela arte, sonetos, redondilhas maiores, menores, decassílabos, que seja!

Exemplo: Outrora pensadores políticos contaram histórias de cidades perfeitas onde todos viviam em harmonia: daí surge o pensamento político socialista utópico baseado num horizonte de sociedade perfeita que deve ser alcançado.

Supostamente antagônico, mas não tanto assim, o modo de produção capitalista também lida com a perfeição: metas, metas, metas! Fazer bem feito não é suficiente, a concorrência e o livre mercado pedem perfeição. Quem somos nós para negar?

Mas não é só de pensamento sócio-político que vive o homem: mesmo pensando no nosso mundindo de forma prática, aí está a perfeição a nos atazanar: Nossas roupas, nossos empregos, nossos salários, nossos carros, nossa imagem, nossos relacionamentos – tudo parece pedir perfeição. Aquela roupa igual a da Helena da novela, aquele emprego dos sonhos, aquele salário que eu sempre pedi a deus, aquele carro do ano, aquele nariz da Débora Secco, a aquele casamento de final de filme americano...

Tanta perfeição não cansa?

Levante a mão (e se mate logo em seguida) quem nunca assistiu uma comédia romântica americana daquelas bem açucaradas. Eu, particularmente, me divirto bastante assistindo um filminho daqueles bem enjoados. Quem não quer um final feliz daqueles?

Só que nenhum desses filmes mostra o que acontece depois do beijo final.

O mocinho puxa a mocinha pela nuca com firmeza, mas sem perder a delicadeza que aquele momento pede. A mocinha entreabre seus lábios, com a respiração acelerada e o coração palpitante. Olhos nos olhos, narizes muito próximos e... O resto vocês já sabem.

O fato é que os filmes não mostram o que acontece depois desse beijo porque o que vem a seguir é exatamente igual à realidade: o casal vai se dar bem; vai se beijar muitas outras vezes; eles vão se divertir muito juntos; vão brigar de vez em quando; vão fazer amor, ou não; vão ficar juntos pro resto da vida, ou não; vão se amar, ou não.

O espaço amostral de 120 minutos é muito pouco para exibir o zigue-e-zague que a vida pode ser. O filme mostra o final feliz, mas, depois, incerteza é a regra.

Não há nada na vida semelhante ao final de um filme, porque o final deles é o nosso começo.

Você e sua mãe brigam como em ‘Sexta-Feira Muito Louca’? Pois bem, pode ser que vocês façam as pazes como no filme (apesar de eu achar improvável que vocês troquem de corpo e tudo mais). Mas, acredite em mim, mesmo depois de toda aquela ladainha, vocês vão voltar a discutir. Pode ser por outros motivos ou pelos mesmos, com menor ou maior freqüência, mas eu garanto que um dia vocês vão voltar a bater boca.

Você pegou um cara com pinta de cafajeste, mas que no fundo tem um coração enorme, e ainda louquinho por você? Exatamente como em ‘A Verdade Nua e Crua’? Que sorte! Mas eu devo avisar que vocês tanto podem ficar juntos para sempre, como não. E mesmo que fiquem, nada é perfeito! Um dia vocês vão discutir, seja por ciúmes, seja porque algo te incomoda nele, seja por causa da escola em que vocês vão colocar seus filhos...

Eu não estou pregando a infelicidade, meus caros. Não é que nós não possamos ser felizes, só não podemos ser felizes o tempo inteiro! Hoje ostentamos um sorriso enorme, mas amanhã acordamos com o pé esquerdo. Quem liga, depois de amanhã a gente vai acabar sorrindo do mesmo jeito!

Não é que felicidade não exista, mas é a perfeição que está difícil de encontrar. E, enquanto não pararmos de comparar nossas vidas com eles modelos perfeitos que só existem no mundo das idéias, não vamos enxergar a felicidade que está bem na nossa frente. Brigar é normal, chorar é normal, ter defeitos é absolutamente normal... Nós só não podemos arrancar nossos cabelos por causa disso, queridos leitores.


segunda-feira, 8 de março de 2010

Parquinho implica cachorros

Esse é um texto meu, mas não tem a minha voz. É um conto antigo, caros leitores, e dele eu gosto bastante.

Após quase oito décadas, sua memória começa a desenvolver certas preferências: alguns acontecimentos são embalsamados por uma implicância apurada; outros ganham uma cor que nunca tiveram outrora, coisas que só a melancolia faz; alguns são simplesmente eleitos ao seu bel prazer para serem esquecidos. Contudo, há fatos da vida que não apenas jamais serão perdidos da lembrança, meu jovem. Também, com os óculos polidos da maturidade, há significados seus que só agora puderam por mim ser enxergados.

Quando criança eu costumava brincar no pequeno parque que havia duas ruas acima da casa da minha mãe. Não era grande coisa, apenas alguns brinquedos velhos. Mas como eram grandes o encanto e as intriguinhas! Mesmo a divisão de meninos e meninas em grupos rivais e corporativistas fazia parte da alegria genuína que escorria quieta sob o entardecer dos dias ensolarados.

Mas havia um porém. Morria de medo de cachorros.

Havia inúmeros pela vizinhança, mesmo que quase nunca aparecessem mais de dois por vez. Eu me recordo muito bem de um vira-lata marrom com umas manchas pretas pelas patas − creio que chamavam-no Queimado. Os meninos do bairro gostavam de jogar pedras nele porque era manco (na verdade, jogavam mesmo para ver as meninas choramingarem de pena). Acho que só eu via que o olhar de Queimado era tão arisco que mais que medo, causava frisson. Mas eu jogava pedras como os outros e tinha que apertar muito forte para que não me vissem tremendo.

O sarnento que eu tinha mais medo, contudo, era preto, cego do olho esquerdo e sem metade da orelha direita. Assustador. Entre os muitos nomes que possuía pelas redondezas, escolhemos Carvão. Nenhum menino ousava maltratá-lo, mas ninguém declarava o próprio temor. Para provar que não éramos medrosos coisa nenhuma, apostávamos quem chegava mais perto do maldito cão, enquanto ele descansava. Talvez por impulso do próprio medo, ganhei algumas vezes. Ironicamente ganhei fama de corajoso por causa de Carvão. Mas quando me desafiaram a puxar seu rabo, eu inventei que ele era um cão de briga fugido e nunca mais ninguém tencionou a perturbar o pobre diabo.


Mesmo que eu não houvesse dado ouvidos aos outros garotos, mesmo que não chegasse a menos de dez metros de um dos caninos, ainda seria tomado pelo velho medo traiçoeiro a mero vislumbre. Aposto contigo, meu jovem, ainda sentiria aquela vontade quase incontrolável de pular em cima do balanço (mesmo sabendo que estava perfeitamente seguro ali, com tia Rosinha com o olho bem preso em mim).

Eu me peguei pensando, esses dias, como seria se não houvessem cães no parquinho. Tardes brilhantes, sem sombra de temor, com os colegas de inocentes maldades. Matutei, matutei, maturei e descobri que, se não existisse um mísero cachorro na vizinhança, eu inventaria um. De certo fui uma criança muito inventiva, mas não é disso que falo - não me tome por insano tão cedo, escute. Estou certo que faria o carteiro mal encarado meu cão, ou alguma vovozinha de sorriso feio, ou as minhocas nojentas da terra úmida abaixo do cajueiro, ou, na falta de todo resto, faria cães dos próprios meninos.

Parquinho implica cachorros, meu caro. Felicidade implicará desalento, uma hora ou outra. Posse implica perda. Céu implica inferno. E entre tudo estará sempre o tempero do medo. Porque, meu amado neto, tudo é um valor tão inconcebível para uma criança lépida quanto para um velho reumático.

Eu te amo e te quero muito bem, querido. Deixar-te é uma dor imensa, o medo me toma a cada segundo em que me aproximo da partida. Você vai estudar? Vai diminuir as farras e abrir os livros? Vai lavar essas orelhas? Mas aí eu lembro que, mesmo que você tenha sido mais meu filho do que qualquer outro, é agora um homem feito e se virará sem mim.

Eu conheço bem as saudades que vão ficar no seu coração, eu conheço bem. Com minha idade avançada, já perdi muitas pessoas queridas. Mas eu já afaguei seus cabelos e catei seus piolhos, empurrei sua bicicleta e enxuguei suas lágrimas... Parece que eu já dei tudo de bom que tinha para lhe dar, então o câncer decidiu que era hora de me levar. Minha partida é tão natural quando minha chegada, tão natural quanto o primeiro beijo e as lágrimas de amor que podem vir em seguida.

Lembre-se sempre, então: Se eu estou indo agora, meu neto, é porque um dia estive aqui.





terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Metapostagem

Admitemos: Não há nada mais criativo que os dois ou três segundos que sucedem uma boa risada.

Hoje mesmo estava lendo um livro e dei uma boa gargalhada. Sozinha no quarto, como uma louca. Que talento é escrever comédias, não é? E não entenda aqui por comediante qualquer um que diga asneiras e leve a si próprio ao ridículo, mas invejo − e daquela melhor das invejas, se é que isso existe − aquele que não cansa o público com gargalhadas sucessivas, nem o entedia com tantos risinhos inteligentes de canto de boca. O bom comediante é esperto o suficiente para conduzir risos altos, sorrisos e o próprio silêncio como notas musicais. Uma boa comédia é como música.

Meus autores favoritos me presenteiam com boas risadas. Teatrais, inteligentes, sexistas, irônicas, avariadas... As mais diversas. Como fui eu acabar escrevendo algo tão diferente do que eu leio?

É esquisito porque quando a gente coloca milho na panela, queridos leitores, a gente espera que saia pipoca ou, na pior das hipóteses, milho queimado.

Não sou adepta da falsa modéstia, então não vou dizer que repudio tudo que já escrevi. Até gosto, às vezes. Acho que sou minha maior fã. Mas tudo acaba sendo tão diferente de tudo: eu consigo escrever draminhas, uma reflexãozinha ou outra, um conto legal ou outro, às vezes sai até ironia... Mas eu nunca escrevo nada que se possa chamar de comédia, que eu tanto leio.

Por quê? Se eu coloco tanto milho na minha cabecinha porque não sai pipoca?

Bem, pra essa pergunta eu não tenho uma resposta. Mas eu tenho uma pista: eu coloco bastante milho, mas eu não coloco apenas milho. Primeiro porque, por mais que eu adore comédias, eu também leio uma porção generosa de dramas, duas xícaras e meia de romances, uma pitada de filosofia. Fora isso, e por que não?, entra também meio quilo de seriados que eu perco hooras assistindo.

Não para por ai: Tudo o que eu vivo define o que eu escrevo, minha família, meus relacionamentos, meus amigos, meu papagaio, a faculdade que eu faço, onde eu moro, tudo!

O que nós escrevemos não é um reflexo imediato daquele estilo que nós lemos, como não é uma versão daquele nosso autor favorito, etc. Escrever não deve ser algo tão academicista. Essas influências também entram no bolo de ingredientes do que nós realmente somos. Mas, além disso, escrever também é colocar no papel um pouquinho das lágrimas que a gente já derramou, dos sorrisos que a gente já deu, dos beijos que a gente já roubou, das broncas que a gente já levou...

E o que as comédias, que eu tanto leio e adoro, deixaram para mim, afinal?

Ao fim e ao cabo, amados leitores, os milhos sempre deixam dentro da panela alguma coisa. Em mim, deixaram a impressão de que, afinal, por mais desgraçada que seja a vida, se você pode rir disso, então você pode fazer qualquer coisa. Quem sabe até mesmo mudar isso, o que quer que isso seja.

O fato é que, por mais que eu não escreva comédias, não quero que minhas últimas páginas carreguem consigo o peso da desilusão e do ponto final (Da mesma forma, eu não quero que essa postagem traga consigo a decisão de que o que eu escrevo não presta para nada. Não queremos que vocês, leitores, cliquem no X’zinho no canto superior direito da tela, certo?).

Eu não digo que vou começar a escrever comédias, não espere por gargalhadas nos próximos posts; mas quem sabe eu possa escrever algo que me satisfaça, se puder rir de mim mesma?

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Narrador Mau Caráter

Era uma vez uma linda menininha de olhos muito azuis e cabelos muito loiros – seu nome era Ana Amélia, conhecida em sua vizinhança como Aninha.

Aninha era uma menina muito gentil e caridosa e, como todas as crianças boazinhas sempre têm, terá um final feliz em nossa estorinha.

Sua mãe sempre dizia: Aninha, respeite os mais velhos! E Aninha obedecia com gosto. Freqüentava um asilo para idosos no seu bairro e lia para os velhinhos toda semana. Na sexta-feira, logo após fazer o dever de casa direitinho, atravessava duas ruas com um livro debaixo do braço. Depois de ler um trecho do livro, Aninha jogava damas com seu Joca e conversava longamente com a Dona Naná.

Que menina graciosa! Espalhava sorrisos por onde passava e, como merece, terá um final muito feliz.

Um dia, Aninha viu um cego tentar atravessar a rua. Que aperto sentiu no coração ao notar a dificuldade do pobre homem. Os motoristas teimavam em não dar passagem.

Aninha e seu generoso coração caminhavam até o pobre cego quando uma moto desgovernada invadiu a calçada e atropelou a pobre garotinha de olhos azuis.

Mas calma, leitores boa gente, eu prometi que Aninha terá um final feliz... E ela terá!

Um homem que passava se apiedou vendo a expressão plácida da pobre menina e, após afastar seus cabelinhos de anjos da testa ensangüentada, ligou para uma ambulância. Eles não demoraram a chegar, mas, de tanto afobamento, atropelaram a pobre menina aumentando ainda mais seu sofrimento.

Calma, o final feliz já vai chegar!

A ambulância chegou ao hospital quase uma hora depois, quando a hemorragia estava quase incontrolável. Aninha, desacordada, ostentava uma expressão de anjinho triste. Tal rostinho cativante teria emocionado o médico de plantão na emergência, mas ele estava tão preocupado com as discussões com a sua esposa que não tratou da menina como deveria.

Uma hora depois é declarada a hora da morte. Aninha morre em razão de uma hemorragia interna. Como no hospital ninguém soube informar seu nome, foi enterrada como indigente. Sua mãe nunca mais soube dela. Os velhinhos nunca mais ouviram sua vozinha doce contar histórias.

Final feliz? Enganei vocês, otários.



Estorinha de mau gosto, eu sei. O caso é que, um dia desses, eu me peguei pensando no que aconteceria se um narrador mentisse. E eu não estou me referindo aqui àqueles narradores personagens que têm uma alma e são plenamente capazes de mentir. Mas imagine um daqueles narradores impessoais, que parecem contar verdades universais, mentindo!

Não precisam imaginar, afinal, vocês, queridos leitores, já leram a história da pobre menina Aninha.

Existem dias espécies de narração: a narração em primeira pessoa – em que o narrador, por mais que conte um fato ocorrido com outrem, está obviamente demonstrando um ponto de vista, uma visão parcial, a visão dele. Outro tipo de narração, a mais clássica, é daquele narrador em terceira pessoa que não assume uma forma humana, mais parece com uma voz que conta verdades, que invade a cabeça de todos, lê todos os pensamentos, onisciente, onipresente, o narrador todo poderoso.

Pois bem, a leitura desse segundo narrador parte do pressuposto que há uma verdade a ser lida, ou seja, que há uma versão da história que é absolutamente verdadeira. Afinal, ninguém nunca se perguntou se a pele da Branca-de-Neve era tão pálida assim, ou se o narrador estava só exagerando. Ninguém nunca parou pra pensar se o sapatinho da cinderela era mesmo de cristal – poderia ser de madeira ou de tecido, só que o narrador teria dito cristal para deixar o conto de fadas mais charmoso. Nunca vi ninguém se questionar se o Harry Potter era mesmo tão bonzinho daquele jeito ou só fazia o tipo. Afinal, todos os desculpariam se ele fosse um garoto problemático, mas o narrador pode ter achado que uma versão mais bondosa seria mais adequada...

Claro, pacientes leitores, que a mentira do narrador da nossa estorinha foi um belo de um exagero. Mas, parem pra pensar: se ele mentiu quanto ao fim da estória, poderia ter mentido sobre qualquer coisa. Aninha poderia ser muito mau caráter, poderia maltratar os velhinhos ou freqüentar o asilo só para paquerar com um enfermeiro... Aliás, Aninha poderia ser bem feia, sem os olhos azuis e o cabelo loiro. Mas, mesmo com tudo isso, nada impediria de o narrador continuar achando sobre ela tudo o que ele disse. Tudo, meus queridos leitores, continuaria sendo o que sempre foi: uma versão.

Não há ‘A’ verdade nem na ficção nem na realidade. A diferença é que na ficção os fatos nascem na cabeça do escritor então não há outra testemunha para dar uma segunda versão.

Na vida, as coisas são um pouquinho diferentes.

Nós temos todo o direito de achar algo: somos seres humanos autônomos, capazes e com neurônios. Ou seja, nós, uma hora ou outra, vamos, invariavelmente, ter uma opinião sobre algo. Mas não somos narradores solitários: sua mãe vai ver as coisas diferentemente, pensando de maneira ‘x’, já seu pai vai pensar de uma forma ‘y’ só dele, sua avó vai chegar à conclusão ‘w’, seu colega de turma vai achar ‘z’, seu chefe vai cismar que é da forma ‘h’, seu namorado vai bater o pé e vai dizer que é ‘j’...

E o mundo vai seguir como sempre foi, repleto de diversidade. Só não podemos decidir brigar com todos os que pensam - um pouquinho que seja - diferente (ou aprisioná-los em guetos, exterminá-los, invadir as fronteiras de seus países). Se decidirmos fazer isso, estaremos comprando briga com o resto do mundo.

Afinal, por mais que ‘b’ pareça com ‘d’, leitores amados, ainda vão ser opiniões diferentes aqui ou ali.

Paremos então de ouvir nossas vozes como se fossem narradores solitários, donos da verdade inquestionável. Seria muito mais sensato enxergar-nos como narradores personagens atrevidos, dando pitaco numa história imensa, tão gigante que nem mesmo nós conseguimos concebê-la em sua totalidade.