sábado, 31 de julho de 2010

A estória de Joãozinho e Pedrinho - ou sobre como as pessoas mudam e continuam as mesmas

Joãozinho e Pedrinho eram os melhores amigos que esse mundo já viu- faziam tudo juntos. Desde que, quando molequinhos, um grandalhão da rua ameaçou Pedrinho e Joãozinho correu para defendê-lo (e acabou levando uns safanões também, mas não por falta de coragem!), tornaram-se companheiros para brincadeiras, estudos, brigas e tristezas. E eles eram assim mesmo, Joãozinho era tão valente que chegava a ser bobo, porque era franzino e raramente ganhava uma briga. Já Pedrinho era um gordinho comilão, quietinho e caladinho, sem vocação para enfrentamentos. Joãozinho era preguiçoso, e só abria livros quando eles tinha quadrinhos, ou para não ficar de recuperação. Pedrinho era um dos geniozinhos da escola, e vivia falando sobre as estrelas, o sol e as galáxias distantes. Além da sua mãe, só Pedrinho conseguia fazer Joãozinho estudar alguma coisa – muito pouco, mas vá lá, já era alguma coisa, pro menino que só queria saber de jogar bola. Para os Pés de Pedrinho, todas as bolas eram quadradas – mas ele até topava ficar de goleiro para Joãozinho treinar seus chutes mirabolantes no quintal.

E eles cresceram assim, um quente e o outro frio, um seco e o outro molhado, um branco e o outro preto, mas duvidé-ó-dó que você achasse alguém que não dissesse que eles eram os melhores amigos desse mundo.

Tique-taque. E eles cresceram um pouco mais: a mãe de Pedrinho o levou para o médico e ele perdeu alguns quilos, apesar de ter continuado baixinho. Aos 18 anos, era o menino mais esperto quanto um rapazote de 18 anos pode ser, e entrou pra faculdade de medicina. Orgulho da mãe e do pai e, por que não?, orgulho de João. Sim, porque não fazia mais sentido chamar o garoto mais alto e forte do bairro de Joãozinho. Tique-taque. O garoto magrelinho esticou para cima e não demorou a entrar na academia, para esticar para os lados também. Nunca mais perdeu uma briga e foi o primeiro a arranjar uma namorada, depois outra, depois outra, depois duas ao mesmo tempo. Tique-taque. João decidiu não fazer faculdade – ia ajudar o pai com os negócios.

Tique-taque. Pedrinho sempre passava as tardes estudando e as noites no curso de Francês. Tique-taque. João trabalhava com o pai todas as tardes para aprender a tocar os negócios e a noite ia malhar, jogar uma pelada, namorar ou sair. Chamou Pedrinho várias vezes, mas o gordinho não achava lugar no meio dos novos amigos de João – eles conversavam sobre garotas que ele nunca tinha visto, músicas que ele nunca tinha escutado e times a que ele nunca tinha assistido jogar. Tique-taque. Já João não achava lugar, do mesmo modo, no novo grupo de Pedro – agora médico residente, um quase doutor – que viviam compartilhando anedotas sobre os casos mais bizarros do último plantão. Tique-taque. João trocou de carro enquanto Pedro juntava dinheiro para o seu primeiro Tique-taque. Um ano sem se ver. Tique-taque. Doutor Pedro comprou um apartamento pequeno para solteiros e comprou um cachorrinho cujo nome era Sabin. Tique-taque. Sabin cresceu e seu João nunca chegou a vê-lo, agora que estava amarrado, muito bem casado, com uma mulher grávida do seu primeiro filho. Tique-taque. Quando o filho de Seu João nasceu, Doutor Pedro estava de plantão no hospital e passou rapidamente pelo quarto para cumprimentar o velho amigo. Tique-taque. Seu João estranhou os muitos quilos a menos de Doutor Pedro, e o cabelo precocemente calvo. Tique-taque. Doutor Pedro estranhou a barba espessa de Seu João e notou que ele não devia estar com tempo para malhar há um longo período. Tique-taque. A esposa de Seu João conheceu, enfim, o famoso Pedrinho, de que a Sogra tanto falava. Tique-taque. Doutor Pedro comentou que estava partindo para a França. Tique-taque. 'Por quê?', perguntou Seu João. Tique-taque. Doutor Pedro iria fazer mestrado na França. Tique-taque. ‘Parabéns, Pedrinho’, Joãozinho abraçou. Tique-taque. E ele foi, o outro ficou. Tique-taque, Tique-taque, Tique-taque, Tique-taque. Os dois melhores amigos desse mundo, Seu João e Doutor Pedro.



A vida, fatalmente, vai dar suas reviravoltas – uns pra lá, uns pra cá, uns juntos, uns separados, uns feios, uns bonitos, uns felizes, uns tristes. A grande sacada é saber o quanto disso é realmente mudança, e o quanto é algo latente, intrínseco, inerente, intrincado, algo antigo que está aqui desde sempre, mas não entendíamos suas repercussões até vê-las dançando nas nossas caras.

Não que as pessoas não mudem: ao contrário, queridos leitores, elas mudam o tempo inteiro. Mas, às vezes, não é inteligente culpar o tempo e as circunstâncias – porque simplesmente não é culpa deles. A vida é algo que acontece.
Então, meu amigo, é assim mesmo, acontece.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Ode à Inutilidade?


Antes de ontem eu dormi 4 horas. Ontem dormi umas 3 e pouca. Hoje perdi a hora de manhã e cheguei na faculdade loucamente atrasada.

Um dia eu me peguei pensando que dormir era uma baita perda de tempo. Afinal, eu perco um tempo enorme dormindo todas as noites quando faço questão de preencher as demais horas do meu dia com um trilhão de coisas chamadas “úteis”. E eu definitivamente não estou reclamando: eu sou o tipo de pessoa que odeia ficar sem fazer nada.

Mas de uma coisa eu nunca posso esquecer: p*ta que pariu, eu adoro dormir. Ai que saudade que eu tenho, da aurora da minha vida, da minha escola querida, que me deixava dormir até mais tarde nos finais de semana... Meu recorde foram dezesseis horas e meia de sono contínuo – e aí, supera essa?

Dormir pra mim é, de longe, uma das melhores coisas da vida. E se eu pensei que dormir era uma perda de tempo, quando é obviamente algo delicioso, foi porque eu de novo, como muita gente, esqueci que a vida é bem mais legal quando a gente enche de coisas “inúteis” também. Esse é um dos meus maiores defeitos.

Nada é tão deliciosamente inútil como cantar alto Baby de Justin Bieber pelo quarto, mesmo que isso seja um pouco constrangedor; pintar as unhas de uma cor nova e berrante a cada semana, assistir a Friends todo dia mesmo você já conhecendo a história; rir do Chandler pela trigésima vez na mesmíssima semana; ver um jogo de basquete ao lado do seu namorado quando você obviamente não entende nada de nada além de “a bola tem que entrar dentro da cesta”; assistir ao jogo da Argentina só pra ver Messi balançando seus cabelos de um lado para o outro; assistir ao jogo da Inglaterra e Estados Unidos por “puuuuro interesse científico”; encontrar uma pessoa querida quando você tem prova no dia seguinte e está “apertadíssima”; tirar cravos dos outros porque INEXPLICAVELMENTE você acha isso divertido; escolher um presente para você mesmo quando você não vai comprar; assistir filme sobre Dragões por um real no meio da semana; DORMIR e tantas outras coisas mais.

Por isso, eu proponho uma devoção às coisas inúteis! A proporção que você vai por entre as coisas úteis e as inúteis na sua vida já é atribuição da autonomia da vontade, mas é sempre bom lembrar que nem tudo na vida é uma declaração de inconstitucionalidade por omissão baseada numa contingente colisão de princípios, que ocorreu em virtude do descompasso entre o horizonte de expectativas e o espaço de experiência. Saca?

Para encerrar, recomendo que ouçam Eletric Twist, da banda A Fine Frenzy (http://www.youtube.com/watch?v=mIpjiYmjXh4). Só porque o ritmo é super gostoso, mesmo que eu não entenda muito o que ela está querendo dizer.
Afinal, nem tudo na vida tem que ser assim tããããããão raciocinado.

Obs.: Homenageados à parte. ;D

domingo, 4 de abril de 2010

Saindo da Rotina

A vida vai, vem, dá meia volta e rodopia. Life’s a bitch, faz o que quer na hora que bem entende e o nosso controle sobre ela é bem menor do que gostaríamos que fosse. Por isso mesmo eu me sinto insegura de escrever sobre minha vida pessoal publicamente. Ninguém sabe do futuro, então eu me abraço à auto-proteção de guardar meus sentimentos para mim mesma.

Se bem que quando a gente escreve – e eu disse isso em uma das últimas postagens – a gente sempre deixa um pouco da nossa vida ali, como uma marca d’água. Então, todos os meus textos têm, naturalmente, bastante de mim. Mas hoje eu vou fazer um pouco diferente. Um dia especial merece reverências especiais.

Nem todos sabem por que hoje é um dia especial, mas os que sabem vão entender a razão de hoje o texto ser assumidamente meu.

O fato é que nós estamos perdidamente sozinhos.

Nossa mente é um emaranhado complexo de pensamentos, sinapses, sentimentos, deduções, ou seja lá como você queira chamar. Como um universo aprisionado numa cabeça de alfinete. Deve ser uma loucura lá dentro, tanto é que quando escapa um pouquinho desse emaranhado, sem passar pelo filtro da nossa racionalização, percebemos a bagunça – nos sonhos, por exemplo.

Se você olha para uma equação matemática e acha difícil, é porque você nunca se deparou frente a frente com um sentimento. Na verdade, ninguém nunca se deparou, e esse é o grande problema. Pensar já é complicado, imagine só sentir. Imagine não, lembre-se, porque todo mundo invariavelmente já sentiu algo. Não sentir frio, ou calor, ou fome, mas se sentiu sozinho, incompreendido, amado, amante, com medo, inseguro, etc.

O grande problema é que nossa linguagem é deficiente. Se a boca humana já tem dificuldades para explicar uma pontada no estômago ou uma dor de cabeça, imagina só a bagunça que é falar de sentimentos.

Como explicar, então, algo abstrato como o amor, por exemplo?

Aí alguém diz: ah.... Amor é amor, bolas. É amar, dã.

De fato, ao longo de séculos e séculos inventamos palavras para expressar os sentimentos. É algo inevitável diante da necessidade social de comunicar-se. Mas toda e qualquer palavra nasce vazia, nós é que a preenchemos – uma hora com um significado, outra hora com outro, numa eterna dança. Por isso toda e qualquer palavra possui uma variabilidade semântica imensa.

Só que preencher o significado de uma palavra como ‘flor’, por exemplo, é significativamente mais simples do que preencher o significado da palavra amor. A ‘flor’ possui um referencial externo compartilhado. Pode até ser impossível descrevê-la por completo, mas, ao menos, é possível descrevê-la de forma relativamente satisfatória.

Como preencher, então, a palavra amor? Como saber se o amor que eu sinto é o mesmo amor que você sente, se eles estão irremediavelmente aprisionados em nossas mentes? O que eu chamo de amor, pode você chamar de obsessão? O que eu chamo de amor, pode você chamar de amizade? O que eu chamo de amor, pode você chamar de desejo, paixão?

Como comparar o meu amor com o seu, para que cheguemos a um denominador comum mastigado e pronto para preencher a palavrinha oca ‘amor’?

Não há como, queridos leitores. A linguagem é a ponte que se propõe a unir duas pessoas, só que essa ponte está quebrada. Criar ‘tipos ideais’, definições universais para palavras como amor, solidão, saudade, tristeza, carinho, compaixão, desejo, culpa é pura perda de tempo. Já é falha a linguagem quando lidamos com um referencial externo como ‘flor’, imagine como ela é capenga para falar de uma coisa que é minha e só minha, e ao mesmo tempo sua e só sua, e ao mesmo tempo dele e só dele, que é o amor.

Então somos caixas fechadas, bem embrulhadas, perambulando por aí. Por mais que uma caixa tente dar dicas do presente que guarda dentro de si – se chacoalhando para mostrar o som, se aproximando para mostrar o cheiro – a outra caixinha jamais saberá. E por mais que uma caixa conte para outra o que há dentro de si, com toda a sinceridade que cabe dentro do seu coraçãozinho de caixa, a outra jamais terá visto, tocado, sentido o presente em suas mãozinhas de caixa.

Por mais que você grite ‘eu me sinto sozinho’, ninguém além de você jamais terá experimentado a sua solidão. Por mais que você escreva uma carta chorosa e saudosa, o leitor jamais terá sentido sua saudade. Por mais que você sussurre no ouvido do outro ‘eu te amo’, apenas você vai ter sentido e conhecido aquele amor.

Estamos sozinhos porque somos mudos. Jamais veremos o presente guardado dentro do embrulho que é o outro. Tentamos nos aproximar, nos tocar, tentamos explicar, nós tentamos... Mas a ponte sempre esteve e sempre estará quebrada.

Provemos: tente explicar o conforto que é ouvir aquela voz daquela pessoa especial. O máximo que eu consigo é, com os olhos fechados e um sorriso bobo atravessado, dizer que é bom e enche meu peito com uma sensação gostosa de calor e segurança. Os olhos e o sorriso são meros sintomas e dizer que é bom, quente e seguro não define absolutamente nada. E você, caro leitor, conseguiu obter resultados melhores que os meus?

Tentemos novamente: explique a sensação daquele abraço carinhoso daquela pessoa especial. Bom, eu me sinto profundamente protegida, como se os problemas do mundo fizessem ‘puft’ e sumissem. Eu sinto um calor gostoso dentro de mim, misturado com a sensação de que eu sou verdadeiramente importante. Apesar de ‘aquele abraço’ ser muito, muito, muito bom, eu cai novamente em palavras vagas como calar gostoso e segurança. E, sejamos honestos, quem já experimentou um abraço verdadeiramente carinhoso sabe que ele vai inexplicavelmente mais além do que essas minhas palavras frias.

Mas, apesar de todas as pontes quebradas e perrengues, nós sentimos carinho, sentimos medo, sentimos compaixão, sentimos saudade, sentimos amor; apesar de todos os entraves, nós sentimos. E isso, pacientes leitores, na minha humilde opinião, é uma das coisas mais belas do mundo.

Encontrar os olhos de uma pessoa especial, bem fincados nos seus; abraçar apertado; beijar longamente; ganhar um cafuné carinhoso nos cabelos; sorrir juntinho, com os olhos bem grudados, como se as risadas compusessem uma melodia juntas; sentir o calor de uma mão amiga na sua; reconhecer o cheiro de alguém bem querido; se sentir importante por receber o carinho que se gosta, sem precisar pedir; reconhecer uma mão carinhosa em seu rosto, mesmo de olhos fechados; dizer ‘eu te amo’ e ouvir de volta –não há palavra nesse mundo que chegue perto de explicar o que acontece dentro da gente nesses momentos.

Mas mesmo assim esses momentos acontecem e ainda bem que eles acontecem, ou a vida seria muito sem graça.

Porque, por mais que estejamos invariavelmente sozinhos dentro de nossas caixas pensantes, não podemos parar de tentar nos aproximar. Como já disseram os grandes, ‘For well you know that it's a fool who plays it cool, by making his world a little colder’.

Se falar é difícil, o que nos resta é sentir. Às vezes, os momentos em que estamos mais próximos de alguém, são os sem palavras: seja num olhar, num abraço, num choro compartilhado, num beijo intenso, numa tarde lado a lado, num momento de paixão.

Mágicos são os momentos em que você, apesar de todas as pontes interditadas, se conecta com aquela pessoa especial – totalmente, completamente. É como voar, voar sobre o abismo e sua ponte quebrada e, por um instante, sentir o chão firme do outro lado sob seus pés.

Então, em nome do que é bom e gostoso nessa vida, vamos tentar juntar nossas caixinhas. Por mais que os presentes estejam escondidos, pelo menos estarão lado a lado, juntos.

Um conselho? Quanto mais juntinho, melhor. Quem vai ser o tolo de dizer que isso não é bom?

sábado, 13 de março de 2010

Platão, comédias românticas e a perfeição.

Em um lindo dia de sol na bela cidade de Atenas, às margens do mar mediterrâneo, um belo rapaz de ombros largos matutava sobre a perfeição. Pensou, pensou, pensou, buscando avidamente um exemplo tangível de esmero dos deuses, requinte dos tempos... Um exemplar de perfeição. Então, ele olhou à sua volta com atenção – A beleza do oceano tirava-lhe o fôlego! O brilho dançava gracioso no azul celeste, que de tão celeste esquecia-se do horizonte e se confundia com o céu. ‘Perfeito, perfeito!’, ele pensou.

No entanto, em seguida, pensou nos naufrágios e nas mortes prematuras causadas pela ressaca dos oceanos, e Platão não via nada de perfeito na morte.

Continuou sua busca pela beleza completa: a mulher mais bonita era casada ou arisca, não servia; o peixe mais fresco, muito caro; os homens mais sábios, muito arrogantes.

Platão então pensou: ora, não há nada de perfeição à minha volta! Ele era certamente um rapaz muitíssimo esperto, mas não é necessária muita esperteza para constatar isso. O que há de feio do mundo, mais do que o que há de belo, sempre salta aos nossos olhos.

‘Mas há perfeito em minha cabeça’, Platão pensou. ‘Na verdade, só há perfeição em minha cabeça’. E Platão concluiu, meus caros leitores, que sua cabeça continha resquícios do mundo verdadeiro, do mundo da perfeição, dum mundo das idéias, onde tudo era perfeito. Nossa realidade pobre e rota seria apenas um reflexo falho das idéias perfeitas de outro mundo que não esse.

Claro que isso tudo foi uma brincadeirinha. Não, eu não faço a mínima idéia de como Platão chegou a sua teoria do ‘mundo das idéias’. Mas eu sei bem que, séculos e séculos depois, a perfeição continua ludibriando os nossos olhos.

A perfeição já foi ambicionada por tantos homens: renascentistas ou iluministas, doidos ou sãos, bonitos ou feios, sempre há alguém suspirando em busca do perfeito. Até nossa literatura de quando em quando buscam a perfeição: arte pela arte, sonetos, redondilhas maiores, menores, decassílabos, que seja!

Exemplo: Outrora pensadores políticos contaram histórias de cidades perfeitas onde todos viviam em harmonia: daí surge o pensamento político socialista utópico baseado num horizonte de sociedade perfeita que deve ser alcançado.

Supostamente antagônico, mas não tanto assim, o modo de produção capitalista também lida com a perfeição: metas, metas, metas! Fazer bem feito não é suficiente, a concorrência e o livre mercado pedem perfeição. Quem somos nós para negar?

Mas não é só de pensamento sócio-político que vive o homem: mesmo pensando no nosso mundindo de forma prática, aí está a perfeição a nos atazanar: Nossas roupas, nossos empregos, nossos salários, nossos carros, nossa imagem, nossos relacionamentos – tudo parece pedir perfeição. Aquela roupa igual a da Helena da novela, aquele emprego dos sonhos, aquele salário que eu sempre pedi a deus, aquele carro do ano, aquele nariz da Débora Secco, a aquele casamento de final de filme americano...

Tanta perfeição não cansa?

Levante a mão (e se mate logo em seguida) quem nunca assistiu uma comédia romântica americana daquelas bem açucaradas. Eu, particularmente, me divirto bastante assistindo um filminho daqueles bem enjoados. Quem não quer um final feliz daqueles?

Só que nenhum desses filmes mostra o que acontece depois do beijo final.

O mocinho puxa a mocinha pela nuca com firmeza, mas sem perder a delicadeza que aquele momento pede. A mocinha entreabre seus lábios, com a respiração acelerada e o coração palpitante. Olhos nos olhos, narizes muito próximos e... O resto vocês já sabem.

O fato é que os filmes não mostram o que acontece depois desse beijo porque o que vem a seguir é exatamente igual à realidade: o casal vai se dar bem; vai se beijar muitas outras vezes; eles vão se divertir muito juntos; vão brigar de vez em quando; vão fazer amor, ou não; vão ficar juntos pro resto da vida, ou não; vão se amar, ou não.

O espaço amostral de 120 minutos é muito pouco para exibir o zigue-e-zague que a vida pode ser. O filme mostra o final feliz, mas, depois, incerteza é a regra.

Não há nada na vida semelhante ao final de um filme, porque o final deles é o nosso começo.

Você e sua mãe brigam como em ‘Sexta-Feira Muito Louca’? Pois bem, pode ser que vocês façam as pazes como no filme (apesar de eu achar improvável que vocês troquem de corpo e tudo mais). Mas, acredite em mim, mesmo depois de toda aquela ladainha, vocês vão voltar a discutir. Pode ser por outros motivos ou pelos mesmos, com menor ou maior freqüência, mas eu garanto que um dia vocês vão voltar a bater boca.

Você pegou um cara com pinta de cafajeste, mas que no fundo tem um coração enorme, e ainda louquinho por você? Exatamente como em ‘A Verdade Nua e Crua’? Que sorte! Mas eu devo avisar que vocês tanto podem ficar juntos para sempre, como não. E mesmo que fiquem, nada é perfeito! Um dia vocês vão discutir, seja por ciúmes, seja porque algo te incomoda nele, seja por causa da escola em que vocês vão colocar seus filhos...

Eu não estou pregando a infelicidade, meus caros. Não é que nós não possamos ser felizes, só não podemos ser felizes o tempo inteiro! Hoje ostentamos um sorriso enorme, mas amanhã acordamos com o pé esquerdo. Quem liga, depois de amanhã a gente vai acabar sorrindo do mesmo jeito!

Não é que felicidade não exista, mas é a perfeição que está difícil de encontrar. E, enquanto não pararmos de comparar nossas vidas com eles modelos perfeitos que só existem no mundo das idéias, não vamos enxergar a felicidade que está bem na nossa frente. Brigar é normal, chorar é normal, ter defeitos é absolutamente normal... Nós só não podemos arrancar nossos cabelos por causa disso, queridos leitores.


segunda-feira, 8 de março de 2010

Parquinho implica cachorros

Esse é um texto meu, mas não tem a minha voz. É um conto antigo, caros leitores, e dele eu gosto bastante.

Após quase oito décadas, sua memória começa a desenvolver certas preferências: alguns acontecimentos são embalsamados por uma implicância apurada; outros ganham uma cor que nunca tiveram outrora, coisas que só a melancolia faz; alguns são simplesmente eleitos ao seu bel prazer para serem esquecidos. Contudo, há fatos da vida que não apenas jamais serão perdidos da lembrança, meu jovem. Também, com os óculos polidos da maturidade, há significados seus que só agora puderam por mim ser enxergados.

Quando criança eu costumava brincar no pequeno parque que havia duas ruas acima da casa da minha mãe. Não era grande coisa, apenas alguns brinquedos velhos. Mas como eram grandes o encanto e as intriguinhas! Mesmo a divisão de meninos e meninas em grupos rivais e corporativistas fazia parte da alegria genuína que escorria quieta sob o entardecer dos dias ensolarados.

Mas havia um porém. Morria de medo de cachorros.

Havia inúmeros pela vizinhança, mesmo que quase nunca aparecessem mais de dois por vez. Eu me recordo muito bem de um vira-lata marrom com umas manchas pretas pelas patas − creio que chamavam-no Queimado. Os meninos do bairro gostavam de jogar pedras nele porque era manco (na verdade, jogavam mesmo para ver as meninas choramingarem de pena). Acho que só eu via que o olhar de Queimado era tão arisco que mais que medo, causava frisson. Mas eu jogava pedras como os outros e tinha que apertar muito forte para que não me vissem tremendo.

O sarnento que eu tinha mais medo, contudo, era preto, cego do olho esquerdo e sem metade da orelha direita. Assustador. Entre os muitos nomes que possuía pelas redondezas, escolhemos Carvão. Nenhum menino ousava maltratá-lo, mas ninguém declarava o próprio temor. Para provar que não éramos medrosos coisa nenhuma, apostávamos quem chegava mais perto do maldito cão, enquanto ele descansava. Talvez por impulso do próprio medo, ganhei algumas vezes. Ironicamente ganhei fama de corajoso por causa de Carvão. Mas quando me desafiaram a puxar seu rabo, eu inventei que ele era um cão de briga fugido e nunca mais ninguém tencionou a perturbar o pobre diabo.


Mesmo que eu não houvesse dado ouvidos aos outros garotos, mesmo que não chegasse a menos de dez metros de um dos caninos, ainda seria tomado pelo velho medo traiçoeiro a mero vislumbre. Aposto contigo, meu jovem, ainda sentiria aquela vontade quase incontrolável de pular em cima do balanço (mesmo sabendo que estava perfeitamente seguro ali, com tia Rosinha com o olho bem preso em mim).

Eu me peguei pensando, esses dias, como seria se não houvessem cães no parquinho. Tardes brilhantes, sem sombra de temor, com os colegas de inocentes maldades. Matutei, matutei, maturei e descobri que, se não existisse um mísero cachorro na vizinhança, eu inventaria um. De certo fui uma criança muito inventiva, mas não é disso que falo - não me tome por insano tão cedo, escute. Estou certo que faria o carteiro mal encarado meu cão, ou alguma vovozinha de sorriso feio, ou as minhocas nojentas da terra úmida abaixo do cajueiro, ou, na falta de todo resto, faria cães dos próprios meninos.

Parquinho implica cachorros, meu caro. Felicidade implicará desalento, uma hora ou outra. Posse implica perda. Céu implica inferno. E entre tudo estará sempre o tempero do medo. Porque, meu amado neto, tudo é um valor tão inconcebível para uma criança lépida quanto para um velho reumático.

Eu te amo e te quero muito bem, querido. Deixar-te é uma dor imensa, o medo me toma a cada segundo em que me aproximo da partida. Você vai estudar? Vai diminuir as farras e abrir os livros? Vai lavar essas orelhas? Mas aí eu lembro que, mesmo que você tenha sido mais meu filho do que qualquer outro, é agora um homem feito e se virará sem mim.

Eu conheço bem as saudades que vão ficar no seu coração, eu conheço bem. Com minha idade avançada, já perdi muitas pessoas queridas. Mas eu já afaguei seus cabelos e catei seus piolhos, empurrei sua bicicleta e enxuguei suas lágrimas... Parece que eu já dei tudo de bom que tinha para lhe dar, então o câncer decidiu que era hora de me levar. Minha partida é tão natural quando minha chegada, tão natural quanto o primeiro beijo e as lágrimas de amor que podem vir em seguida.

Lembre-se sempre, então: Se eu estou indo agora, meu neto, é porque um dia estive aqui.





terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Metapostagem

Admitemos: Não há nada mais criativo que os dois ou três segundos que sucedem uma boa risada.

Hoje mesmo estava lendo um livro e dei uma boa gargalhada. Sozinha no quarto, como uma louca. Que talento é escrever comédias, não é? E não entenda aqui por comediante qualquer um que diga asneiras e leve a si próprio ao ridículo, mas invejo − e daquela melhor das invejas, se é que isso existe − aquele que não cansa o público com gargalhadas sucessivas, nem o entedia com tantos risinhos inteligentes de canto de boca. O bom comediante é esperto o suficiente para conduzir risos altos, sorrisos e o próprio silêncio como notas musicais. Uma boa comédia é como música.

Meus autores favoritos me presenteiam com boas risadas. Teatrais, inteligentes, sexistas, irônicas, avariadas... As mais diversas. Como fui eu acabar escrevendo algo tão diferente do que eu leio?

É esquisito porque quando a gente coloca milho na panela, queridos leitores, a gente espera que saia pipoca ou, na pior das hipóteses, milho queimado.

Não sou adepta da falsa modéstia, então não vou dizer que repudio tudo que já escrevi. Até gosto, às vezes. Acho que sou minha maior fã. Mas tudo acaba sendo tão diferente de tudo: eu consigo escrever draminhas, uma reflexãozinha ou outra, um conto legal ou outro, às vezes sai até ironia... Mas eu nunca escrevo nada que se possa chamar de comédia, que eu tanto leio.

Por quê? Se eu coloco tanto milho na minha cabecinha porque não sai pipoca?

Bem, pra essa pergunta eu não tenho uma resposta. Mas eu tenho uma pista: eu coloco bastante milho, mas eu não coloco apenas milho. Primeiro porque, por mais que eu adore comédias, eu também leio uma porção generosa de dramas, duas xícaras e meia de romances, uma pitada de filosofia. Fora isso, e por que não?, entra também meio quilo de seriados que eu perco hooras assistindo.

Não para por ai: Tudo o que eu vivo define o que eu escrevo, minha família, meus relacionamentos, meus amigos, meu papagaio, a faculdade que eu faço, onde eu moro, tudo!

O que nós escrevemos não é um reflexo imediato daquele estilo que nós lemos, como não é uma versão daquele nosso autor favorito, etc. Escrever não deve ser algo tão academicista. Essas influências também entram no bolo de ingredientes do que nós realmente somos. Mas, além disso, escrever também é colocar no papel um pouquinho das lágrimas que a gente já derramou, dos sorrisos que a gente já deu, dos beijos que a gente já roubou, das broncas que a gente já levou...

E o que as comédias, que eu tanto leio e adoro, deixaram para mim, afinal?

Ao fim e ao cabo, amados leitores, os milhos sempre deixam dentro da panela alguma coisa. Em mim, deixaram a impressão de que, afinal, por mais desgraçada que seja a vida, se você pode rir disso, então você pode fazer qualquer coisa. Quem sabe até mesmo mudar isso, o que quer que isso seja.

O fato é que, por mais que eu não escreva comédias, não quero que minhas últimas páginas carreguem consigo o peso da desilusão e do ponto final (Da mesma forma, eu não quero que essa postagem traga consigo a decisão de que o que eu escrevo não presta para nada. Não queremos que vocês, leitores, cliquem no X’zinho no canto superior direito da tela, certo?).

Eu não digo que vou começar a escrever comédias, não espere por gargalhadas nos próximos posts; mas quem sabe eu possa escrever algo que me satisfaça, se puder rir de mim mesma?

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Narrador Mau Caráter

Era uma vez uma linda menininha de olhos muito azuis e cabelos muito loiros – seu nome era Ana Amélia, conhecida em sua vizinhança como Aninha.

Aninha era uma menina muito gentil e caridosa e, como todas as crianças boazinhas sempre têm, terá um final feliz em nossa estorinha.

Sua mãe sempre dizia: Aninha, respeite os mais velhos! E Aninha obedecia com gosto. Freqüentava um asilo para idosos no seu bairro e lia para os velhinhos toda semana. Na sexta-feira, logo após fazer o dever de casa direitinho, atravessava duas ruas com um livro debaixo do braço. Depois de ler um trecho do livro, Aninha jogava damas com seu Joca e conversava longamente com a Dona Naná.

Que menina graciosa! Espalhava sorrisos por onde passava e, como merece, terá um final muito feliz.

Um dia, Aninha viu um cego tentar atravessar a rua. Que aperto sentiu no coração ao notar a dificuldade do pobre homem. Os motoristas teimavam em não dar passagem.

Aninha e seu generoso coração caminhavam até o pobre cego quando uma moto desgovernada invadiu a calçada e atropelou a pobre garotinha de olhos azuis.

Mas calma, leitores boa gente, eu prometi que Aninha terá um final feliz... E ela terá!

Um homem que passava se apiedou vendo a expressão plácida da pobre menina e, após afastar seus cabelinhos de anjos da testa ensangüentada, ligou para uma ambulância. Eles não demoraram a chegar, mas, de tanto afobamento, atropelaram a pobre menina aumentando ainda mais seu sofrimento.

Calma, o final feliz já vai chegar!

A ambulância chegou ao hospital quase uma hora depois, quando a hemorragia estava quase incontrolável. Aninha, desacordada, ostentava uma expressão de anjinho triste. Tal rostinho cativante teria emocionado o médico de plantão na emergência, mas ele estava tão preocupado com as discussões com a sua esposa que não tratou da menina como deveria.

Uma hora depois é declarada a hora da morte. Aninha morre em razão de uma hemorragia interna. Como no hospital ninguém soube informar seu nome, foi enterrada como indigente. Sua mãe nunca mais soube dela. Os velhinhos nunca mais ouviram sua vozinha doce contar histórias.

Final feliz? Enganei vocês, otários.



Estorinha de mau gosto, eu sei. O caso é que, um dia desses, eu me peguei pensando no que aconteceria se um narrador mentisse. E eu não estou me referindo aqui àqueles narradores personagens que têm uma alma e são plenamente capazes de mentir. Mas imagine um daqueles narradores impessoais, que parecem contar verdades universais, mentindo!

Não precisam imaginar, afinal, vocês, queridos leitores, já leram a história da pobre menina Aninha.

Existem dias espécies de narração: a narração em primeira pessoa – em que o narrador, por mais que conte um fato ocorrido com outrem, está obviamente demonstrando um ponto de vista, uma visão parcial, a visão dele. Outro tipo de narração, a mais clássica, é daquele narrador em terceira pessoa que não assume uma forma humana, mais parece com uma voz que conta verdades, que invade a cabeça de todos, lê todos os pensamentos, onisciente, onipresente, o narrador todo poderoso.

Pois bem, a leitura desse segundo narrador parte do pressuposto que há uma verdade a ser lida, ou seja, que há uma versão da história que é absolutamente verdadeira. Afinal, ninguém nunca se perguntou se a pele da Branca-de-Neve era tão pálida assim, ou se o narrador estava só exagerando. Ninguém nunca parou pra pensar se o sapatinho da cinderela era mesmo de cristal – poderia ser de madeira ou de tecido, só que o narrador teria dito cristal para deixar o conto de fadas mais charmoso. Nunca vi ninguém se questionar se o Harry Potter era mesmo tão bonzinho daquele jeito ou só fazia o tipo. Afinal, todos os desculpariam se ele fosse um garoto problemático, mas o narrador pode ter achado que uma versão mais bondosa seria mais adequada...

Claro, pacientes leitores, que a mentira do narrador da nossa estorinha foi um belo de um exagero. Mas, parem pra pensar: se ele mentiu quanto ao fim da estória, poderia ter mentido sobre qualquer coisa. Aninha poderia ser muito mau caráter, poderia maltratar os velhinhos ou freqüentar o asilo só para paquerar com um enfermeiro... Aliás, Aninha poderia ser bem feia, sem os olhos azuis e o cabelo loiro. Mas, mesmo com tudo isso, nada impediria de o narrador continuar achando sobre ela tudo o que ele disse. Tudo, meus queridos leitores, continuaria sendo o que sempre foi: uma versão.

Não há ‘A’ verdade nem na ficção nem na realidade. A diferença é que na ficção os fatos nascem na cabeça do escritor então não há outra testemunha para dar uma segunda versão.

Na vida, as coisas são um pouquinho diferentes.

Nós temos todo o direito de achar algo: somos seres humanos autônomos, capazes e com neurônios. Ou seja, nós, uma hora ou outra, vamos, invariavelmente, ter uma opinião sobre algo. Mas não somos narradores solitários: sua mãe vai ver as coisas diferentemente, pensando de maneira ‘x’, já seu pai vai pensar de uma forma ‘y’ só dele, sua avó vai chegar à conclusão ‘w’, seu colega de turma vai achar ‘z’, seu chefe vai cismar que é da forma ‘h’, seu namorado vai bater o pé e vai dizer que é ‘j’...

E o mundo vai seguir como sempre foi, repleto de diversidade. Só não podemos decidir brigar com todos os que pensam - um pouquinho que seja - diferente (ou aprisioná-los em guetos, exterminá-los, invadir as fronteiras de seus países). Se decidirmos fazer isso, estaremos comprando briga com o resto do mundo.

Afinal, por mais que ‘b’ pareça com ‘d’, leitores amados, ainda vão ser opiniões diferentes aqui ou ali.

Paremos então de ouvir nossas vozes como se fossem narradores solitários, donos da verdade inquestionável. Seria muito mais sensato enxergar-nos como narradores personagens atrevidos, dando pitaco numa história imensa, tão gigante que nem mesmo nós conseguimos concebê-la em sua totalidade.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Corrida Mental: Meu particular método de escrita.

Todos que já tentaram escrever algo, dessas coisas que saem de dentro da gente, seja um poema, uma carta, um conto, um livro, todos já provavelmente passaram pelo terrível momento frustrante do ‘isso estava bem melhor escrito na minha cabeça’.

Escrever não é cuspir no papel. Para a maioria das pessoas, que não os gênios ou os psicógrafos, escrever é um processo de árdua elaboração. Ou seja, para nós, pobres mortais, escrever não é uma via de mão única, mas um processo de estruturação, reestruturação, análise, lapidação. É um processo bastante penoso: quanto mais complicado for seu projeto, mais suor sua pena tirará de você.

Então, o escritor, seja o profissional ou o de gaveta, escreve, reescreve e escreve de novo até encontrar o ponto em que o seu texto está ideal – para ele mesmo, claro, porque todo escritor tem seu jeitinho próprio.

Às vezes, contudo, o escritor encontra um dilema, paciente leitor. De tanto rolar e desenrolar a idéia em sua cabeça, vez por outra, fica a sensação de que ‘ não devia estar assim’, ou ‘não era desse jeito’. Vez por outra, fica aquela estúpida impressão de que estava bem melhor enquanto era apenas uma conversa entre os neurônios.

Mas eu acho que me defronto com essa sensaçãozinha irritante muito mais do que o normal.

Eu simplesmente não consigo escrever algo duas vezes. Talvez seja por falta de memória, mas para mim, frasear é um fenômeno irrepetível, como viver. E frasear não é apenas escrever no papel – mas também falar e pensar! Se eu passar uma única vez um texto na minha cabeça, na voz daquele narrador interno que há dentro de nós, ele jamais sairá daquela forma novamente e eu ficarei frustrada para todo o sempre (mesmo que a idéia seja ruim, pra começo de conversa).

Ok, não sejamos tão dramáticos.

Eu realmente não tenho nenhum processo particular de escrita: não tenho uma bancada especial, uma hora específica, um fundo musical apropriado; não faço distinção entre escrever no computador ou à mão; não prefiro uma cor de caneta; nem bebo ou fumo nada para me preparar para por as mãos à obra. Eu simplesmente tenho uma idéia, vou lá e começo, onde quer que lá seja.

Mas eu simplesmente não posso escrever mentalmente antes. A vozinha do meu cérebro não pode escrever o texto antes de mim, ou ele estará perdido para sempre. É uma corrida, a idéia embrionária chega, e se dá a largada: quem escreverá primeiro, meu cérebro ou minha mão? Chegarei primeiro ao papel ou meu narrador interno será mais veloz?

Claro que depois disso eu preciso reformar, adequar, melhorar o texto como todo mundo. Mas a idéia bruta tem que chegar ao papel assim, brutinha da silva.

Talvez eu tenha sérios problemas mentais. Talvez não. A questão é que, quando uma idéia vem, eu tenho que tentar calar a boca da minha cabeça tagarela, pelo menos até eu conseguir caneta e papel.

No momento, por exemplo, eu estou fazendo duas pessoas esperarem por mim no MSN. Falta de educação? Não, queridos leitores, estado de necessidade.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Física vs. Vida Real, parte II

Não, antes que me perguntem, eu não tenho nenhuma implicância particular com a Física. Na escola, inclusive, sempre foi uma das minhas matérias preferidas. Mas quando você assiste Lost, você acaba pensando mais do que o saudável em viagens no tempo e universos paralelos, portanto, em Física. De quando em quando, então, acaba saindo uma analogia curiosa.

Vocês já notaram como somos gigantescos? Realmente muito grandes? Se você, leitor, for um físico vai responder: blábláblá, depende do referencial, blábláblá.

Daí eu respondo, exatamente, meu caro!

Se você comparar o seu corpo, paciente leitor, com o de um bactéria, você vai parecer obviamente gigantesco. Já se você comparar com o tamanho do universo... Parecerá minúsculos, certo?

Errado, pra mim, está errado.

Tente imaginar o tamanho do universo. É difícil, praticamente ininteligível. Estudiosos afirmam que o universo real é muito maior que o universo visível. O diâmetro do universo observável é de pelo menos 93 bilhões de anos luz, cerca de 8,80x 10 26 m². Difícil de imaginar... Há divergências entre os cientistas se o universo é finito ou infinito.

Agora, tente imaginar todos os pensamentos que você já teve durante toda a sua vida. Impossível, já que você se esqueceu da grande maioria deles. Mas façamos uma estimativa. Pense na quantidade de pensamentos que você pode ter em um dia comum, que já são inúmeros. Imagine os mais simples – como uma observação sobre o tempo, um pensamento fugaz sobre aquele professor irritante ou sobre aquela sua paquera –, como pequenas bolas de gude. Os pensamentos de complexidade mediana – preocupações com provas da faculdade, planos para sua carreira, escolha de um livro para ler – pense como bolas de tênis. Os pensamentos mais complexos e profundos – reflexões sobre o seu futuro, o sentido da sua vida, a felicidade, o amor – são bolas de futebol, ou esferas ainda maiores.

Acrescente a esse conjugado de pensamentos do seu dia os sentimentos – a raiva, a amizade, a tristeza, a saudade, a inveja, a paixão, o amor – como forças interligando essas esferas, relacionando-as, movimentando-as como numa dança. Eu escolho aquele romance para ler porque estou apaixonada por fulaninho, mas não posso ler agora porque tenho que estudar para a prova daquele professor irritante, etc.

Então, para deixar tudo ainda mais bagunçado, pense naqueles instintos e sensações mais carnais – a fome, a auto-proteção, a dor, o impulso sexual – como esferas pequenas, mas muito impertinentes, que vez por outra colidem com nossos pensamentos, modificando-os e, conseqüentemente, mexendo com a força entre eles, os nossos sentimentos.

Sem demora, pense nos sonhos que você teve esse dia. Muitos não lembram, mas sonhamos diversas vezes por noite. Imagine esses sonhos como emaranhados de pensamentos, sentimentos e instintos incompreensíveis: buracos negros, pontos do nosso ‘pequeno’ universo que nem mesmo nós podemos alcançar.

Devo lembrar-lo, caro leitor, que esse universo que imaginamos juntos é o que acontece dentro de você durante um único dia. Multiplique, agora, por todos os dias de sua vida.

Pois é, gigantesco, não? E está em expansão, exatamente como o universo lá fora. Ainda acha que somos pequenos?

É necessária a lembrança de que esse universo gigantesco não existe apenas dentro de você, mas dentro de mim, dentro do seu vizinho, do seu melhor amigo (e de todos os outros também), do seu namorado ou namorada, da sua desavença, da sua tia irritante, do seu professor pé no saco, das pessoas desconhecidas na rua. Somos, atualmente cerca de 7 bilhões de universos gigantescos vivendo no mesmo planetinha minúsculo.

Então, ou paramos com essa história que dois corpos (ou cerca de 7 bilhões de universos) não ocupam o mesmo lugar no espaço, ou temos que começar a imaginar que somos todos universos paralelos convivendo diariamente e dizendo bom dia todas as manhãs.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Física vs. Vida Real

Tomada 1:

Dois namorados estão conversando em um banco da pracinha do bairro. É cerca de seis horas da noite e as crianças da vizinhança já estão recolhendo suas bicicletas depois de uma tarde de brincadeiras.

O namorado está apreensivo, mas tenta não deixar transparecer. Ele já não gosta tanto assim da garota e, já faz algum tempo, decidiu acabar o namoro. A sua namorada tagarela longamente sobre seu dia, sua escola, sua família, suas amigas, enquanto ele escuta calado com um sorriso forçado.

Olhando a quietude à sua volta, o namorado decide que aquela é a hora. Começa então com um ‘precisamos conversar’. A namorada logo para de falar e o olha séria. Ele fala com delicadeza, esforçando-se para não ofendê-la. Não nega que estava um tanto nervoso, mas tentou falar calmamente. ‘Você é uma menina muito bonita, legal e tal, mas...’ Aos poucos, acaba falando tudo. Fica triste pela expressão triste no rosto da então ex-namorada, mas volta para casa satisfeito com o fim racional e adulto que teve aquele curto relacionamento.


Tomada 2:

Dois namorados estão conversando em um banco da pracinha do bairro. É cerca de seis horas da noite e as crianças da vizinhança já estão recolhendo suas bicicletas depois de uma tarde de brincadeiras.

A namorada conta rapidamente sobre o seu dia, aninhando-se no conforto do ombro de seu namorado. Ele ouve calado, mas exibe o seu sorriso mais carinhoso. Como seu sorriso é charmoso! Os olhos meio apertados e o cabelo castanho caindo pelos olhos. A namorada, depois de um relacionamento tão longo, ainda sente seu coração acelerar.

Então ele desfaz aquele sorriso doce e, com uma expressão séria, diz que precisam conversar. A namorada não faz a mínima idéia do que há por vir, mas ouve atentamente.

Ele fala com frieza e rapidez, como quem não liga muito pro que está dizendo. ‘... mas eu não gosto mais tanto de você como no começo’. Ela sente seu coração se despedaçar dentro de si e sai desolada, andando rápido para não chorar na frente dele. Que humilhação! Como ele pode acabar tudo de bonito que eles construíram juntos, de uma forma tão repentina e fria?



Os físicos possuem uma ambição esquisita: explicar o universo através de leis que valham a qualquer tempo e sob qualquer circunstância. Do tipo S= So+vot+at²/2 ou E=mc². Há quem deseje explicar o universo inteiro através de uma única lei!

Eu não sou uma grande entendedora de física, portanto, não vou me meter demais nesse assunto. Mas eu tenho notícias de que no próprio campo de estudo da física, dificuldades inúmeras há pra essa aspiração curiosa: a luz, por exemplo, ora se comporta como partícula, ora se comporta como onda.

Mas eu obviamente não vim aqui para falar sobre física.

Certa vez, vi um documentário na TV a cabo muito interessante, o qual afirmou que é a mesma área do cérebro é ativada para tanto para a lembrança quanto para a imaginação. Isso quer dizer que o que está feito não está feito. Nós recriamos o passado dentro de nossas próprias cabeças, a interpretação da realidade está sujeita às variações desse aqui e desse agora, aos sabores dos nossos sentimentos e emoções. Depois do segundo fugaz em que o presente é presente, ele vira passado e, portanto, ficção.

E há mais! Não é só o passado que é afetado. Como provar que essa realidade, esse segundo fugaz que chamamos de presente, é o mesmo para mim e para você? Nem sabemos se o verde que eu vejo é o mesmo verde que você, caro leitor, vê. Somos enigmas para o outro, como presentes eternamente embalados. Nós observamos a embalagem, apalpamos, cheiramos, balançamos para ouvir o barulho que faz, tentamos adivinhar a surpresa, mas jamais teremos uma dimensão completa do que há dentro da caixa.

Tanto o outro, como a realidade em si, são vistos sempre através dos óculos escuros da nossa história e das nossas emoções.

Assim sendo, vim fazer um apelo: Por favor, parem de tentar criar leis, regras ‘universais’ para a vida real; e por ‘vida real’ eu pretendo significar nada mais que nosso cotidiano, nosso dia-a-dia banal enquanto pessoas. Deixem isso para os físicos, eles são bons nisso. Para os demais, isso é redondamente impossível.

Claro que existem padrões de comportamento. Mas tais padrões não são leis eternas que podemos vislumbrar por trás de cada ser humano, mas são representações lingüísticas de uma generalização que fazemos a partir da observação da realidade concreta.

Só que, como visto, essas generalizações possuem um sério problema: não só a realidade muda o tempo inteiro, como nossas próprias observações são duvidosas. Lembre-se da conversa entre nossos dois conhecidos namorados, logo acima. Não parecia que eles estavam no mesmo relacionamento. Na verdade, nem mesmo parecia que eles participaram da mesma conversa! Quantas vezes vamos conversar com um amigo com quem havíamos brigado e saímos achando que está tudo resolvido, enquanto o outro sai fulo da vida?

Portanto, por favor, não é porque vocês acharam − e a palavra é exatamente essa, acharam, encontraram – um padrão de comportamento aqui, que vocês vão tentar impor ele para o mundo inteiro, para sempre. Não há uma única forma de lidar com os mais velhos, como não há um momento certo para se dizer que se ama, como não há uma forma ideal de conquistar alguém, como não há um caminho certo para a felicidade. Parem com essas tentativas de padronizar o comportamento das pessoas, isso é pura perda de tempo.

Nesse plano, viver se parece muito com a gramática. A língua existe, as pessoas falam – a partir daí os gramáticos criam regras, mas sempre acaba sobrando algumas dezenas de exceções.

Não estou categoricamente afirmando que não há leis universais no tocante ao que é ser humano. Apenas afirmo que nós não somos capaz de alcançá-las, se existirem. Se há um ser capaz de enxergar essas leis universas por baixo de todos os panos da humanidade, certamente não é humano.

Estamos os humanos imersos nesse nosso momento da história, nós fazemos parte dela. E tudo o que fazemos, dizemos, criamos, pensamos, observamos é a própria história. O universo observa a si mesmo, o mundo observa a si mesmo.

Nós somos mentalmente limitados pelo que aconteceu antes de nós e o que acontece dentro da gente; e obviamente mais complexos do que um par de moléculas ou uma esfera e um plano inclinado. Então é o que eu digo: Deixem as leis universais para os físicos, eles são bem melhores em lidar com elas.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Sobre os benefícios do amor.

No último post eu falei da insatisfação dos nossos. Um pouco sobre isso fala a famosa história da mitologia grega, o amor de Eros e Psique.

Um rei tinha três lindas filhas cuja beleza despertava a ambição de muitos homens e a inveja de muitas mulheres. A mais bela de suas filhas, chamada Psique, estranhamente, não conseguira desposar. Na verdade, sua beleza de tão pura e graciosa havia despertado a inveja não apenas das mortais, mas da própria Afrodite, a deusa da beleza e do amor.

Afrodite, transtornada, enviou seu filho Eros, o deus do amor, enfeitiçá-la para que se casasse com o homem mais feio do mundo. Eros, obediente, desceu do Olimpo para cumprir sua tarefa. Ao ver Psique com os próprios olhos, contudo, Eros, a personificação do amor, ficou profundamente encantado por sua beleza e por ela se apaixonou.

O pai de Psique, estranhando a solteirice de sua filha, decidiu consultar um oráculo, que lhe disse que deveria levar Psique para o alto de uma montanha para que desposasse um terrível monstro.

Penalizado, porém resignado, o rei assim o fez.

No alto da montanha, contudo, Psique não encontrou monstro algum. Ela foi levada pela força gentil dos ventos até o castelo mais belo que ela jamais vira. Durante o dia inteiro ela foi ajudava por servos invisíveis, que lhe disseram que jamais deveria tentar descobrir a identidade do seu esposo, ou o perderia.

À noite, Psique foi tomada pelos braços de um amante invisível que a amou da forma mais terna que nenhum deus ou mortal amou uma mulher no mundo.

Essa rotina se repetiu e, tão logo quanto a sua beleza despertou a afeição de Eros, Psique se apaixonou por seu amante invisível.

Mas um dia todos acabamos querendo mais do que temos. Psique começou a se sentir desesperadamente só no castelo que, agora, ela via como prisão. Insistiu para seu marido invisível que pudesse ver suas irmãs. Eros se apressou em negar, prevendo as conseqüências desse encontro; mas, apaixonado, acabou por ceder.

Voltando do encontro de suas – agora invejosas – irmãs, Psique trouxe consigo uma incurável curiosidade sobre a face do seu amante; os mexericos venenosos de suas irmãs voltaram a fazê-la pensar nele como um monstro desprezível.

À noite, enquanto seu amado dormia, Psique se aproximou dele com um candelabro. Para sua surpresa, a chama iluminou o rosto mais belo que ela já vira na vida. Ali estava seu amante invisível, Eros, um deus, a própria encarnação do amor.

Feliz e exaltada, ainda mais apaixonada, Psique se distraiu e deixou cair algumas gotas do líquido fervente do candelabro, que queimou na pele divina de seu amante. Eros despertou assustado, para em seguida ficar enfurecido com a desconfiança de Psique. Ordenou que ela jamais o procurasse novamente.

Psique despertou no castelo dos seus pais, sem Eros, sem amor. Então a alma (Psique) e o amor (Eros), outrora juntos e felizes, agora vagavam tristes e solitários pelo mundo.

Se a história acabasse aqui seria uma continuação da minha última postagem. Mas hoje minha proposta é outra. A alma e o amor, meus amigos, não conseguiram viver separados, na mitologia grega. Psique procurou Afrodite, que lhe designou tarefas mortais para que pudesse reaver o seu amado. Na última delas, Psique quase falhou, mas foi salva por Eros.

O amor e a alma passaram a viver lado a lado no Olimpo, desde então.

Um história bonita, que traz consigo a idéia de que o amor e a alma são incapazes de viver separados. Mas essa não é uma corrente muito difundida por esses dias, pelo que eu vejo. Tantos são aqueles que acreditam que as pessoas, até eles mesmos, são incapazes de amar.

É bem verdade que o ser humano é, por natureza, individualista. Isso não é uma crítica, é um fato. Como se fosse um instinto de auto-proteção, um escudo contra as adversidades do mundo lá fora. E esse traço marcante também se reproduz nas suas relações... O amor, a amizade, todas são relações profundamente individualistas. Há sempre um lobby implícito, eu cuido de você e você me faz bem, eu amo você e você me dá carinho, etc.

Essa peculiaridade, no entanto, não torna os relacionamentos humanos menos bonitos ou impossíveis. Algo muito mais belo e muito maior se forma sobre essa característica: um sentimento não é apenas um elo entre duas pessoas. Quando alimentamos os sentimentos, seja qual for, eles adquirem uma identidade própria, quase personificada, muito maior que os dois amantes, os dois amigos. Ele ganha suas próprias dimensões, seu próprio corpo, seus próprios gostos e travessuras. E, quando os amantes ou amigos não o alimentam como deveriam, ele pode, como uma pessoa, morrer.

Por isso, eu não digo que o individualismo é uma barreira para o amor, tornando-o impossível ou improvável. Ao contrário, o individualismo é uma característica do amor, dentro das limitações da humanidade.

A descrença no amor se baseia na busca de um amor correto, um amor que trará a felicidade enquanto todos os demais estariam fadados ao fracasso. Minha bandeira é diametralmente oposta, pois eu digo: Amem.

Amem da forma que vocês souberem/quiserem/puderem amar: amem timidamente, com bilhetinhos ou cartas anônimas; amem tresloucadamente, com serenatas e declarações de amor eterno; amem à moda antiga, com flores e bonbons; amem ardentemente, em cima de uma cama; amem platonicamente. Amem sofridamente como nos amores românticos de outrora ou abracem o amor amigo, da comédia romântica dos dias chuvosos. Amem, qualquer que seja a cor, o credo desse amor. Amem o amor colorido, amem o amor preto e branco. Amem vários, como no amor livre, ou amem um só, amem por um dia ou amem para toda a vida. O importante é que amem.

Afinal, se você souber amar verdadeiramente alguém, como Eros amou Psique, vai poder sentir a dor do marido que perdeu sua esposa nos escombros do Haiti e vai poder amá-lo também. Se você puder amar seus pais, vai sentir o vazio no peito dos órfãos da AIDS na África e vai poder amá-los também. Se você amar um filho, vai poder entender o desespero da mãe que perdeu seu filho para o tráfico e vai poder amá-la também.

O mundo precisa de um pouco de amor, meus caros, seja qual for o que vocês tiverem para oferecer.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

A matemática é simples; as variáveis, não.

Nós nunca estamos satisfeitos, como monstros devoradores de emoções; quando mais exercitamos a fome, mais fome surge do nada.

Uma senhora visita a casa de sua comadre todo fim de tarde. E, todas as tardes, é servido um café delicioso, o café mais bem feito de toda a vizinhança. Mas um dia o delicioso vira costume, o costume vira comum, o comum vira tedioso e o tédio, amigos, é ruim.

Então a senhora joga verde para sua comadre e sugere trocar o cafezinho pelo chá, que não é assim tão gostoso quanto o antigo café, mas dá pro gasto. É novo, diferente, relativamente agradável...

Mas um dia bate uma saudaaade daquela café gostoso da comadre.

O que devo fazer, então?, pergunta a comadre. A senhora responde, sirva os dois, minha amiga. Pensa internamente, a nossa querida senhora, sou sua amiga, lhe faço companhia... Ela tem a obrigação de me servir os dois, chá e café!

Tem mesmo? Qual será o próximo passo? Coca cola com rum? Vinho tinto ou licor de menta?

Precisamos de afeto, de compreensão, de calor, de cuidado. Mas o processo mental de avaliação é invertido: y = a+b+c, sendo y meu amigo, meu pai, minha mãe, meu marido, minha esposa, meu namorado ou minha namorada, que implica em uma quantidade 'a’ de carinho que deve ser dada a mim, uma quantidade ‘b’ de compreensão que deve ser cedida a mim, uma quantidade ‘c’ de dedicação que deve ser dirigida a mim, etc.

Não me leve a mal. E eu não digo aqui que as pessoas são incapazes de doar a si mesmas. Mas, quando todo mundo à nossa volta é visto como uma função do nosso ego, do nosso eu, todos deixamos de ser realmente vistos como pessoas. E todo o pequeno universo que é um ser humano é visto apenas em uma face, a face que nos interessa. Ele não é uma pessoa, com desejos, aspirações, dificuldades, preconceitos, virtudes, passado, futuro, ele é meu amigo que deveria entender meu ponto de vista. Ela não é uma pessoa, é a minha mãe que deveria ser compreensiva comigo acima de tudo. Ele não é alguém único e inacreditavelmente vivo, é meu marido que deveria que dar tal quantidade de atenção, etc. É como ver apenas uma das faces de um cubo, ou melhor, de um sólido com milhares de faces.

A matemática é simples: Considerando esses dados, a próxima dedução conduz-nos à catástrofe. 1) Se ‘x’ deseja uma quantidade ‘a’ e; 2) Se ‘y’ também deseja uma quantidade ‘a’... Silogisticamente, 3) Os dois vão continuar desejando e nada feito.

Volta e meia idealizamos como gostaríamos que nosso chefe nos tratasse, como gostaríamos que nossos pais nos amassem, como gostaríamos que nossos filhos se comportassem... Idealiza-se tanto e tão frequentemente que se esquece dos limites da realidade concreta. Os limites do que é ser humano.

Não que eu possa dizer como deve ou não deve ser feito, que se deve ou não deve idealizar; ou eu estaria realizando o mesmo processo idealizador estúpido, da busca da ideia perfeita. Só sinto que seria muito mais agradável experimentar as pessoas, agradecendo pela xícara, de chá ou café, que elas possam ter para nos oferecer.