segunda-feira, 8 de março de 2010

Parquinho implica cachorros

Esse é um texto meu, mas não tem a minha voz. É um conto antigo, caros leitores, e dele eu gosto bastante.

Após quase oito décadas, sua memória começa a desenvolver certas preferências: alguns acontecimentos são embalsamados por uma implicância apurada; outros ganham uma cor que nunca tiveram outrora, coisas que só a melancolia faz; alguns são simplesmente eleitos ao seu bel prazer para serem esquecidos. Contudo, há fatos da vida que não apenas jamais serão perdidos da lembrança, meu jovem. Também, com os óculos polidos da maturidade, há significados seus que só agora puderam por mim ser enxergados.

Quando criança eu costumava brincar no pequeno parque que havia duas ruas acima da casa da minha mãe. Não era grande coisa, apenas alguns brinquedos velhos. Mas como eram grandes o encanto e as intriguinhas! Mesmo a divisão de meninos e meninas em grupos rivais e corporativistas fazia parte da alegria genuína que escorria quieta sob o entardecer dos dias ensolarados.

Mas havia um porém. Morria de medo de cachorros.

Havia inúmeros pela vizinhança, mesmo que quase nunca aparecessem mais de dois por vez. Eu me recordo muito bem de um vira-lata marrom com umas manchas pretas pelas patas − creio que chamavam-no Queimado. Os meninos do bairro gostavam de jogar pedras nele porque era manco (na verdade, jogavam mesmo para ver as meninas choramingarem de pena). Acho que só eu via que o olhar de Queimado era tão arisco que mais que medo, causava frisson. Mas eu jogava pedras como os outros e tinha que apertar muito forte para que não me vissem tremendo.

O sarnento que eu tinha mais medo, contudo, era preto, cego do olho esquerdo e sem metade da orelha direita. Assustador. Entre os muitos nomes que possuía pelas redondezas, escolhemos Carvão. Nenhum menino ousava maltratá-lo, mas ninguém declarava o próprio temor. Para provar que não éramos medrosos coisa nenhuma, apostávamos quem chegava mais perto do maldito cão, enquanto ele descansava. Talvez por impulso do próprio medo, ganhei algumas vezes. Ironicamente ganhei fama de corajoso por causa de Carvão. Mas quando me desafiaram a puxar seu rabo, eu inventei que ele era um cão de briga fugido e nunca mais ninguém tencionou a perturbar o pobre diabo.


Mesmo que eu não houvesse dado ouvidos aos outros garotos, mesmo que não chegasse a menos de dez metros de um dos caninos, ainda seria tomado pelo velho medo traiçoeiro a mero vislumbre. Aposto contigo, meu jovem, ainda sentiria aquela vontade quase incontrolável de pular em cima do balanço (mesmo sabendo que estava perfeitamente seguro ali, com tia Rosinha com o olho bem preso em mim).

Eu me peguei pensando, esses dias, como seria se não houvessem cães no parquinho. Tardes brilhantes, sem sombra de temor, com os colegas de inocentes maldades. Matutei, matutei, maturei e descobri que, se não existisse um mísero cachorro na vizinhança, eu inventaria um. De certo fui uma criança muito inventiva, mas não é disso que falo - não me tome por insano tão cedo, escute. Estou certo que faria o carteiro mal encarado meu cão, ou alguma vovozinha de sorriso feio, ou as minhocas nojentas da terra úmida abaixo do cajueiro, ou, na falta de todo resto, faria cães dos próprios meninos.

Parquinho implica cachorros, meu caro. Felicidade implicará desalento, uma hora ou outra. Posse implica perda. Céu implica inferno. E entre tudo estará sempre o tempero do medo. Porque, meu amado neto, tudo é um valor tão inconcebível para uma criança lépida quanto para um velho reumático.

Eu te amo e te quero muito bem, querido. Deixar-te é uma dor imensa, o medo me toma a cada segundo em que me aproximo da partida. Você vai estudar? Vai diminuir as farras e abrir os livros? Vai lavar essas orelhas? Mas aí eu lembro que, mesmo que você tenha sido mais meu filho do que qualquer outro, é agora um homem feito e se virará sem mim.

Eu conheço bem as saudades que vão ficar no seu coração, eu conheço bem. Com minha idade avançada, já perdi muitas pessoas queridas. Mas eu já afaguei seus cabelos e catei seus piolhos, empurrei sua bicicleta e enxuguei suas lágrimas... Parece que eu já dei tudo de bom que tinha para lhe dar, então o câncer decidiu que era hora de me levar. Minha partida é tão natural quando minha chegada, tão natural quanto o primeiro beijo e as lágrimas de amor que podem vir em seguida.

Lembre-se sempre, então: Se eu estou indo agora, meu neto, é porque um dia estive aqui.





2 comentários:

  1. Muito bom, adorei, você escreve muito bem! Sou seu fã :)

    E te amo bagarai (L)

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  2. Eeeei, você tem muito talento, Má!
    Que conto mais lindo! É incrível como você consegue se transportar para o ser de outra pessoa, e de uma maneira tão reflexiva, criativa e cativante!
    Também sou sua fã!

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