quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Narrador Mau Caráter

Era uma vez uma linda menininha de olhos muito azuis e cabelos muito loiros – seu nome era Ana Amélia, conhecida em sua vizinhança como Aninha.

Aninha era uma menina muito gentil e caridosa e, como todas as crianças boazinhas sempre têm, terá um final feliz em nossa estorinha.

Sua mãe sempre dizia: Aninha, respeite os mais velhos! E Aninha obedecia com gosto. Freqüentava um asilo para idosos no seu bairro e lia para os velhinhos toda semana. Na sexta-feira, logo após fazer o dever de casa direitinho, atravessava duas ruas com um livro debaixo do braço. Depois de ler um trecho do livro, Aninha jogava damas com seu Joca e conversava longamente com a Dona Naná.

Que menina graciosa! Espalhava sorrisos por onde passava e, como merece, terá um final muito feliz.

Um dia, Aninha viu um cego tentar atravessar a rua. Que aperto sentiu no coração ao notar a dificuldade do pobre homem. Os motoristas teimavam em não dar passagem.

Aninha e seu generoso coração caminhavam até o pobre cego quando uma moto desgovernada invadiu a calçada e atropelou a pobre garotinha de olhos azuis.

Mas calma, leitores boa gente, eu prometi que Aninha terá um final feliz... E ela terá!

Um homem que passava se apiedou vendo a expressão plácida da pobre menina e, após afastar seus cabelinhos de anjos da testa ensangüentada, ligou para uma ambulância. Eles não demoraram a chegar, mas, de tanto afobamento, atropelaram a pobre menina aumentando ainda mais seu sofrimento.

Calma, o final feliz já vai chegar!

A ambulância chegou ao hospital quase uma hora depois, quando a hemorragia estava quase incontrolável. Aninha, desacordada, ostentava uma expressão de anjinho triste. Tal rostinho cativante teria emocionado o médico de plantão na emergência, mas ele estava tão preocupado com as discussões com a sua esposa que não tratou da menina como deveria.

Uma hora depois é declarada a hora da morte. Aninha morre em razão de uma hemorragia interna. Como no hospital ninguém soube informar seu nome, foi enterrada como indigente. Sua mãe nunca mais soube dela. Os velhinhos nunca mais ouviram sua vozinha doce contar histórias.

Final feliz? Enganei vocês, otários.



Estorinha de mau gosto, eu sei. O caso é que, um dia desses, eu me peguei pensando no que aconteceria se um narrador mentisse. E eu não estou me referindo aqui àqueles narradores personagens que têm uma alma e são plenamente capazes de mentir. Mas imagine um daqueles narradores impessoais, que parecem contar verdades universais, mentindo!

Não precisam imaginar, afinal, vocês, queridos leitores, já leram a história da pobre menina Aninha.

Existem dias espécies de narração: a narração em primeira pessoa – em que o narrador, por mais que conte um fato ocorrido com outrem, está obviamente demonstrando um ponto de vista, uma visão parcial, a visão dele. Outro tipo de narração, a mais clássica, é daquele narrador em terceira pessoa que não assume uma forma humana, mais parece com uma voz que conta verdades, que invade a cabeça de todos, lê todos os pensamentos, onisciente, onipresente, o narrador todo poderoso.

Pois bem, a leitura desse segundo narrador parte do pressuposto que há uma verdade a ser lida, ou seja, que há uma versão da história que é absolutamente verdadeira. Afinal, ninguém nunca se perguntou se a pele da Branca-de-Neve era tão pálida assim, ou se o narrador estava só exagerando. Ninguém nunca parou pra pensar se o sapatinho da cinderela era mesmo de cristal – poderia ser de madeira ou de tecido, só que o narrador teria dito cristal para deixar o conto de fadas mais charmoso. Nunca vi ninguém se questionar se o Harry Potter era mesmo tão bonzinho daquele jeito ou só fazia o tipo. Afinal, todos os desculpariam se ele fosse um garoto problemático, mas o narrador pode ter achado que uma versão mais bondosa seria mais adequada...

Claro, pacientes leitores, que a mentira do narrador da nossa estorinha foi um belo de um exagero. Mas, parem pra pensar: se ele mentiu quanto ao fim da estória, poderia ter mentido sobre qualquer coisa. Aninha poderia ser muito mau caráter, poderia maltratar os velhinhos ou freqüentar o asilo só para paquerar com um enfermeiro... Aliás, Aninha poderia ser bem feia, sem os olhos azuis e o cabelo loiro. Mas, mesmo com tudo isso, nada impediria de o narrador continuar achando sobre ela tudo o que ele disse. Tudo, meus queridos leitores, continuaria sendo o que sempre foi: uma versão.

Não há ‘A’ verdade nem na ficção nem na realidade. A diferença é que na ficção os fatos nascem na cabeça do escritor então não há outra testemunha para dar uma segunda versão.

Na vida, as coisas são um pouquinho diferentes.

Nós temos todo o direito de achar algo: somos seres humanos autônomos, capazes e com neurônios. Ou seja, nós, uma hora ou outra, vamos, invariavelmente, ter uma opinião sobre algo. Mas não somos narradores solitários: sua mãe vai ver as coisas diferentemente, pensando de maneira ‘x’, já seu pai vai pensar de uma forma ‘y’ só dele, sua avó vai chegar à conclusão ‘w’, seu colega de turma vai achar ‘z’, seu chefe vai cismar que é da forma ‘h’, seu namorado vai bater o pé e vai dizer que é ‘j’...

E o mundo vai seguir como sempre foi, repleto de diversidade. Só não podemos decidir brigar com todos os que pensam - um pouquinho que seja - diferente (ou aprisioná-los em guetos, exterminá-los, invadir as fronteiras de seus países). Se decidirmos fazer isso, estaremos comprando briga com o resto do mundo.

Afinal, por mais que ‘b’ pareça com ‘d’, leitores amados, ainda vão ser opiniões diferentes aqui ou ali.

Paremos então de ouvir nossas vozes como se fossem narradores solitários, donos da verdade inquestionável. Seria muito mais sensato enxergar-nos como narradores personagens atrevidos, dando pitaco numa história imensa, tão gigante que nem mesmo nós conseguimos concebê-la em sua totalidade.

2 comentários: